quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

«Temporada de Furacões» de Fernanda Melchor :: Opinião

«Temporada de Furacões» de Fernanda Melchor é uma narrativa gargantuesca que se desenrola a um ritmo frenético, não só pela forma como os eventos acontecem (pelo menos até certa parte), mas pela escrita de Melchor, uma escrita de tirar o fôlego, como se subíssemos uma escadaria enorme. Interminável. Onde cada degrau é bem maior que o anterior e precisamos sempre de balanço para continuar a subir. As frases – e sim, as frases – muitas delas são de mais de uma página e narram uma enorme miséria, sofrimento e violência, mas ao mesmo tempo demonstram a riqueza bruta da escrita da autora.

A escrita é o furacão!

“(…) com os cabelos despenteados e as faces rosadas pela emoção, as mulheres da terra benziam-se porque podiam imaginá-la nua, a montar o diabo e a afundar-se na sua verga grotesca até à empunhadura, com o sémen do diabo a escorrer-lhe pelas coxas, vermelho como lava, ou verde e espesso como as mistelas que borbulhavam no caldeirão em cima do lume e que a Bruxa dava a beber às colheradas para as curar dos seus males…” 

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

«Limpa» de Alia Trabucco Zéran :: Opinião

"A mulher ficou calada.
Ele pediu-lhe por favor.
Ela levantou-se, ajeitou a saia, pegou no casaco e na mala.
- O que define uma tragédia - disse a mulher -, é que sabemos sempre como acaba."

Podia escolher o epílogo com as palavras de Camus, mas estas são tão ou mais agitadoras, quantas as vezes forem recordadas ao longo da leitura.

A senhora dona Mara López:
"Havia qualquer coisa nela. Era como um... deixem-me pensar. Um desapego. Ou não. Essa não é a melhor palavra. Um desprezo, é isso. Como se todos a aborrecessem ou lhe repugnasse todo e qualquer tipo de cumplicidade. Pelo menos era essa a sua aparência. A máscara que cuidadosamente colocava todas as manhãs."

O senhor doutor Jensen:
"Não sei descrevê-lo melhor, talvez vocês me possam ajudar. Como definiriam uma pessoa que não fuma, que quase não bebe, que antes e pronunciar uma palavra a pesa e calcula, de forma a evitar exageros que o façam perder tempo. Um homem  obcecado pelo tempo. (...) uma perpétua contagem decrescente."

Falta apresentar a menina. A patroa mais pequena. 
A menina morreu. 
Sim a meninas está morta. A história pode ter vários inícios, mas o desfecho é esse. A menina morreu. A menina filha dos patrões está morta!

sábado, 13 de janeiro de 2024

«Raparigas da Província» de Edna O’Brien - Opinião

Li com muito interesse, sofreguidão e até sofrimento o livro, «Menina» de Edna O’Brien, e fui em busca desse efeito quando agarrei em «Raparigas da Província», talvez porque a menina-mulher na capa, no seu ar frágil, mas de expressão forte, ao mesmo tempo ausente e misterioso, captou logo o meu interesse. E sim, ainda vou a muitos livros pelo magnetismo de uma boa capa, mesmo quando se trata de um livro de início de carreira, como é o caso deste que data de 1960.

Ambas as leituras têm quase 60 anos de diferença. 60 anos de produção literária 😉 mas o génio de O’Brien já lá está, com cerca de 30 anos. 

O brilhantismo de em poucas palavras, criar imagens fortes, as personagens com valores, mas que se questionam no seu moralismo (e o dos outros), as preocupações com grandes temas, felizmente posicionando as mulheres no centro das narrativas, mesmo que expondo as suas fragilidades e condicionantes, sem que para isso os homens sejam demonizados. Muito por isto, mas por tantas coisas mais, será para breve o regresso à escrita desta irlandesa e dessa vez será com o aclamado «Pequenas Cadeiras Vermelhas».

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

«Lucy à beira-mar» de Elizabeth Strout :: Opinião


"A tristeza no meu peito parecia subir e descer de acordo com... com o quê? Não sabia.
E o tempo mantinha-se frio, lúgubre.
Sobre o meu trabalho, eu pensava: nunca mais escrevo uma única palavra."

Mas ainda bem que escreveu! Ainda bem que Elizabeth Strout continuou este saga de Lucy Barton, pois para mim é como reencontrar pessoas que conheço (que vou conhecendo e de quem gosto) e sinto que me conhecem a mim, tal é a forma brilhante como a autora consegue captar sentimentos e sensações, narrando esta coisa de amar que em tanto parece diferente, mas que facilmente encontra semelhantes.

"Quase sempre, predominava a tal sensação de estar debaixo de água; de nada me parecer de verdade.
(...) A tristeza que subia e descia em mim era como as marés."

Foi dessa forma que a pandemia invadiu as nossas vidas, mergulhando-nos a todos em dúvidas e preocupações, afastando-nos com uma onda esmagadora que só pela força das marés seguintes quis contrariar o que poderia ser o destino e foi-nos deixando recuperar aos poucos. E é precisamente sobre afastamento e reaproximação que Strout nos fala neste quarto livro onde reencontramos Lucy e William, as filhas do casal e as memórias que teimam em surgir numa época mais que propícia a isso: o confinamento. 

"«A minha infância inteira foi um confinamento. Nunca via ninguém e nunca ia a lado nenhum.» E a verdade desta constatação atingiu-me em cheio nos intestinos e o William olhou simplesmente para mim e respondeu: «Eu sei, Lucy.» Disse-o de maneira automática, sem pensar nas minhas palavras, pelo menos foi o que achei."

Algumas dessas memórias permitem atravessar melhor esses dias quase desertos, outras bem que podiam não ter sido convocadas. Por isso, a pandemia afectou-nos de formas tão díspares. E uso sempre tempos verbais que me incluam, porque os livros de Strout são isso mesmo, viagens que fazemos com estes personagens que vão dentro de nós. 

"O Sol ia alto no céu azul, perto dele as nuvens brancas pareciam entufadas e, de repente, num ápice, o Sol escondeu-se atrás de uma das nuvens e alterou a aparência do mundo (...)"

O Sol aqui é a escrita de Strout, exímia em evocar nuvens que transformam pequenos entendimentos do nosso mundo, nem que seja o nosso pequeno-mundo-bolha de leitor.

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Opiniões anteriores:

- «Oh, William!»

- «Tudo é possível»

- «O meu nome é Lucy Barton»