Desde cedo se percebe a dolorosa e cinzenta existência de Eszter, a companhia complacente e minimalista de Nunu e a presença intermitente de Tibor e Endre, e claro a eterna presença platónica de Lajos. Esta eterna espera, repete-se tal como acontece em "As velas ardem até ao fim", também já aqui lido e comentado, e é enternecedor perceber que voltamos a uma vida, a uma casa e a um fim sempre marcado pela dor dos que ficam em prol dos que, fortes, partem sem deixar rasto. Esses que partem, desmembram e quebram a existência e o futuro dos que ficam, fragilizando os seus sentimentos, despedaçando os seus corações, mas sabendo, sabe-se lá como, deixar uma réstia de esperança, uma luz, ténue mas persistente, acalentando a eterna espera.
Existe na pacatez e na tenacidade de Eszter um traço de ingenuidade, mas também um enorme pragmatismo e lucidez, o que chega a ser assustador, pois retira de Lajos a totalidade da culpa e nos deixa a questionar se não é tão errada a atitude de quem atraiçoa e engana, como a de quem sabe que é enganada e assim o permite? Não são só estas as questões que o enredo límpido e brilhante de Márai desperta no leitor, há todo um entendimento sobre carácter e família que, em breves frases, consegue provocar uma enorme onda de instrospecção.
Márai é talentoso na forma como relata sentimentos, é polido sem ser dramático, é romântico sem ter devaneios, é demorado nos mais pequenos detalhes, mas não cansa o leitor, é tão equilibrado que até nos faz perguntar como são possíveis estes enredos dramáticos e quase inverosímeis. Como entender uma espera de mais de vinte anos sem notícias ou desfechos? Não é em si a ausência um desfecho?
A panóplia de sentimentos é contraditória, tanto admiramos Eszter como a estranhamos e a sentimos fraca, ou como nos iludimos com um galã, astuto e de discurso poético, para lhe descobrirmos a boémia e leviandade, revelando-se um cobarde na aceitação dos seus sentimentos. É talvez de aceitação e de adaptação que este livro faça uma melhor retrospectiva, mostrando a força de duas mulheres, isoladas, mas independentes, unidas por laços familiares e mais tarde por uma forte cumplicidade. E depois há um jardim, um local bucólico e de subsistência. Um tesouro.
Já perto do final, no verdadeiro reencontro e desabafo, o confronto final com a derradeira mentira, a revelação que muda tudo, mas ainda assim, Lajos, mesmo falhado, como Eszter o olha e o sente, pergunta-lhe se os erros de uma vida, se as falhas e as acusações não prescrevem? E quem são os puros, os verdadeiros, os intocáveis que se julguem capazes e no direito de julgar e cobrar sempre, durante uma vida inteira?
Em todo o livro o que mais brilha é mesmo a escrita do autor, que mesmo em simplicidade contêm tudo e intromete-se na cabeça do leitor, fazendo com que as personagem vibrem dentro de nós e os cenários desfilem com uma nitidez quase cinematográfica. Brilhante!
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