Efeito dos Livros – Conforme pensámos desde cedo perguntar-lhe, eis, a nosso ver a questão mais urgente: será que escreveu um livro que possa ser lido por qualquer português, comum? Conseguirá um português, na sua cultura, linguagem e interesses… isto em média, ler o seu livro e entender certas palavras e enredos mais complicados? Será uma composição motivacional e desafiante?
Joaquim Fernandes – Julgo que o tom geral da escrita é bem acessível ao leitor comum, ainda que um pouco à margem da narrativa da história; há muitos factos, interligados, e por onde caminho deduzindo nexos e consequências, mas sem a complexificação do discurso historiográfico que se pretende crítico e armado de referências cruzadas e citações de autoridades na matéria. O tom usado nesta abordagem da “História Prodigiosa de Portugal. Mitos&Maravilhas” é de alguma leveza, com leves toques de ironia, q.b., para facilitar o degustar de matérias normalmente áridas para os não-iniciados. Motivação não falta no elenco de questões, mais ou menos originais, geralmente pouco tratadas nos nossos compêndios, obrigados a visões de fundo estruturais por norma, socioeconómicas, regidas por tendências que ainda vigoram nas nossas faculdades. Mas esta coleta de episódios tem muito mais a ver com os "interiores” da alma portuguesa, dos arcanos mais profundos do nosso modo de ser e de sentir, de projetar e sublimar as nossas fraquezas e os nossos limites. Acho, pois, que instiga a um a leitura emocional e emocionada, mas também com alguma leveza.
Efeito dos Livros – Seria possível pegar nestes factos e romanceá-los num romance do fantástico e criar, quem sabe uma trilogia ou uma saga de mitos, lendas e maravilhas deste Portugal tão entregue à falácia e às «estórias»
Joaquim Fernandes - A nossa memória coletiva sintetiza vários afluentes culturais, como explico na Introdução deste livro e por si só condensa um vasto repertório de experiências singulares e tradições oriundas de latitudes diversas. Temos no nosso ADN legados de expressões sentimentais, nostálgicas, latentes no sentir mediterrânico, mas também do universo céltico, nórdico, feito de elementais e de magia. Tudo isso suscita amplas leituras cruzadas e sínteses poderosas onde o encantamento é possível e nos podemos ensimesmar com toda uma legião de figuras lendárias e um acervo riquíssimo do imaginário universal. Por isso temos todas as condições e potencialidades para explorar em termos literários essa via da poética da alma e do ultrassensível.
Efeito dos Livros – A nós, ocorreu-nos o quanto seria interessante esta parte da nossa história ser agarrada e interpretada em séries televisivas, como tantas que existem, sobre mitologia e fantástico… mas de outros países e outras histórias. Inspirou-se em alguma quando pensou em escrever esta obra? De onde surge a ideias de escrever sobre estes mitos e lendas?
Joaquim Fernandes – Esse é um dos objetivos da minha investigação: reproduzir em imagens esse quadro de episódios tão atrativo e original que rodeia a nossa experiência histórica mais profunda e oculta da superfície do quotidiano. Falta que alguém – um produtor, uma estação de televisão – assuma esse enorme potencial que referi, e ofereça aos nossos olhos esse panorama incrível de exaltação do fantástico. Sempre me ocupei do papel e das manifestações do Imaginário no decurso da minha função de historiador: a minha tese de doutoramento versa “O Imaginário Extraterrestre na Cultura Portuguesa – do fim da Modernidade a meados do século XIX”, que surgirá muito em breve em livro, com o título principal de “Moradas Celestes”, com a chancela da Âncora Editora. Estamos nos domínios do “prodígio”, do nunca-visto ou do impossível, e daí o meu interesse e envolvimento com situações similares na nossa História.
Efeito dos Livros – Estas são partes de uma história esquecida ou é um livro de História de um país esquecido?
Joaquim Fernandes – Como disse, são parte das profundidades inertes, pouco estudadas ou em letargia nos nossos arquivos e bibliotecas, adormecida ao pó dos séculos e quase sempre ignoradas ou varridas para debaixo do tapete por alegado desinteresse para o tratamento científico da nossa História.
Contudo, em muito boa parte – para não dizer na sua parte esmagadora as decisões políticas são determinadas por crenças e atitudes irracionais, fundadas precisamente nesse icebergue de pensamento mágico-religioso que nos deixou de acompanhar desde os primórdios da evolução como “sapiens sapiens”.
Efeito dos Livros - Tem alguma intenção política com o seu livro, a sua obra, a sua pesquisa? Fará sentido numa época de crise, económica, social, de valores… e que põe em causa a nossa própria identidade nacional – escrever um livro que, a seu modo, glorifica Portugal?
Joaquim Fernandes – Parece-me lógico que se retire algum ensinamento crítico deduzido do conteúdo da obra: é precisamente pelo facto de atravessarmos uma “crise” – de valores e de identidade, nacional e até europeia – que expondo este elenco de “maravilhas”, de prodígios, e as suas relações com actos políticos, sugiro a nossa credo-dependência de fórmulas e rituais pouco ou nada racionais e que têm conduzido a sociedade portuguesa a outras formas de dependência. Há preconceitos religiosos e mentais mais ou menos grosseiros que nos têm sonegado a possibilidade de promover avanços comparativamente a outros povos, mormente do centro e norte europeu. Mas aí intervém por certo a nossa “forma mentis”, mais débil e atrativa ao pensamento mágico-religioso e ao tributo que muitas vezes concedemos a vontades exteriores. Por tudo isso, a descrição desses “feitos gloriosos” assume, ao contrário, uma intenção crítica de assinalar os nossos exageros e submissão a potências e vontades alheias, humanas ou divinas. De certo modo, todas estas nossas deficiências já haviam sido registadas por pensadores como Antero de Quental, ao procurara as razões da decadência dos povos peninsulares.
Efeito dos Livros – Como é construir e engendrar logisticamente todo este manancial de informação? Sabemos que existirá o Tomo II – há ainda muito mais por contar? Somos efectivamente um país com uma longa e complexa História?
Joaquim Fernandes – É um trabalho moroso, complexo de reunião de dados e tecê-los pacientemente nos seus aspetos mais comuns, associá-los nas suas causas e consequências ao longo das diversas conjunturas históricas e depois planear a tessitura da obra. O 2º Tomo será consagrado aos aspetos mágicos e misteriosos dos séculos XIC e XX. A maior dificuldade reside aqui na seleção das fontes, muito mais variadas e ricas em função do desenvolvimento da imprensa escrita, como se percebe. Creio que continuarmos a desdobrar novos meandros da história pouco conhecida, feita de pequenos-longos interstícios para onde nunca ninguém olhou, numa incessante renovação da face de quem fomos e somos.
Efeito dos Livros – Como professor, como vê a dedicação, interesse e consciência dos jovens pela história do seu país? Interessa-lhe mais estas partes obscuras e rebuscadas a que tanto se tem dedicado?
Joaquim Fernandes – Julgo que se assiste a uma renovação do interesse pela História, nacional e universal. Há consciência, mesmo em camadas jovens, que ainda não conhecemos a verdadeira extensão da nossa vivência neste planeta. Temos bastantes fragmentos dessa experiência mais ou menos acessíveis e adquiridos, mas restam dúvidas em outros momentos mais longínquos vividos pela nossa espécie, acerca da sua natureza e complexidade. E esse é um trabalho que urge prosseguir até ao cabal esclarecimento dos mitos que pendem sobre a saga da humanidade.
Efeito dos Livros – Será a cultura e a História um «breve parêntesis» num país de atitude e personalidade fortemente atávico Seremos efectivamente um país atávico? O seu livro contribuirá para reduzir esse efeito?
Joaquim Fernandes – Temos atavismos que resistem no fundo das nossas consciências. Uns mais do que outros vão-se libertando desses constrangimentos estruturais e genéticos. Temos essas duas faces antagónicas, que lutam por se impor. É uma luta surda no íntimo da nossa evolução, que continua – assinale-se – e ainda está para durar. E tal é o caminho pela verdade contra a ilusão e, sobretudo, a ignorância. Pode ser que o meu trabalho - limitado como o é – venha a inspirar outros envolvimentos e análises em torno desta entidade a que chamamos Portugal.
Assim esperamos, cá estaremos para a continuação, Gratas pela atenção Joaquim, continuação de um bom trabalho.
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