domingo, 29 de setembro de 2019

«Uma Questão de Conveniência» de Sayaka Murata - Opinião


«Dentro da pequena caixa iluminada que é a loja, sinto a manhã fluir com normalidade. Do lado de fora dos vidros reluzentes e sem uma única dedada, vejo as pessoas caminharem apressadas. Mais um dia que começa. É esta a hora a que o mundo acorda e todas as suas engrenagens se põem a girar. Também eu estou em movimento, como uma dessas engrenagens. Sou uma peça no mecanismo do mundo (...).
Naquele momento, e pela primeira vez, eu fazia parte da humanidade. Acabo de nascer, pensei. Aquele dia marcou sem dúvida o meu começo como peça do mecanismo do mundo."

Keiko Kurukura é uma peça na engrenagem do mundo do trabalho, mas mais do que isso é, no seu entendimento, o trabalho que define e convenciona toda a sua existência. No manual de funcionamento e de regras de atendimento da loja de conveniência ela descobriu um manual para a vida. Entre stocks de ramen e oniguiris, umas quantas vénias e muitos Irasshaimasê, Keiko vai-se definindo como pessoa, seja na tentativa de estabelecer amizades, seja no corresponder ao que é socialmente aceite e pedido às mulheres. No entanto, a loja de conveniência não é um local conveniente para se continuar década após década a trabalhar. Que tipo de vida ira Keiko conseguir? Que homem quererá casar com ela? Estas perguntam não atormentam Keiko, mas são motivo de conversa entre conhecidos e familiares, que a analisam e criticam directamente na sua cara, mostrando-lhe que não corresponde ao padrão de sociedade para uma mulher japonesa da sua idade. 

"Os olhos de quem despreza uma coisa são particularmente fascinantes. Às vezes escondem o medo de ouvir argumentos contrários. Outras, trazem o brilho agressivo de quem desafia (...). Noutros casos, quando o desprezo é inconsciente, os globos oculares parecem cobertos por uma película, envoltos no prazer extasiante que o sentimento de superioridade provoca nas pessoas."

São estas breves análises que conferem transversalidade ao texto de Murata. Ela não retrata só a sociedade japonesa ou o mundo do trabalho nipónico. Como também não caracteriza só o socialmente aceitável para as mulheres lá do outro lado do globo. Não, nada disso. Murata consegue em poucas linhas e por vezes num tom quase adolescente caracterizar o mundo e a forma ancestral como ainda se olham certas situações. E prova ainda, que a normalidade ou o ser-se ajustado à realidade são coisas tão difíceis de definir quanto cada individuo per si.

"O padrão do mundo é rígido e os corpos estranhos são eliminados sem alarde. O seres humanos fora do padrão acabam por ser ajustados e corrigidos. 
Esse é o motivo que me faz pensar que preciso de me curar. Se não o fizer, serei dispensada pelas pessoas normais..." 

O mais interesse de todo o livro é fazer-nos pensar precisamente no que são pessoas normais ou no que é aceite como normalidade.


sábado, 21 de setembro de 2019

«O que fica somos nós», Jill Santopolo :: Opinião



“Durante anos senti-me culpada. Culpada de nos termos beijado a primeira vez enquanto a cidade ardia, culpada por ter sido capaz de me perder em ti naquele momento. Mas, mais tarde, compreendi que não éramos os únicos. As pessoas confessaram-me, em sussurros, que tiveram sexo naquele dia. Que fizeram um filho. Que ficaram noivos. Que disseram «amo-te» pela primeira vez. Há alguma coisa na morte que faz as pessoas quererem viver. Naquele dia queríamos viver, e não nos culpo por isso. Deixei de nos culpar.”

Este romance de Jill Santopolo está cheio de culpa e ambiguidades e talvez seja isso que o torna tão plausível.
É a culpa por não se ter o condão de adivinhar qual é o destino de cada um e de uma vida a dois.

Lucy, Gabe e Darren compõem um enredo cheio de encontros e desencontros e até um certo abandono. São vidas cheias, mas ao mesmo tempo vazias, vidas em função de outras vidas; de objectivos, de sonhos, de certezas. Certezas que a vida se encarrega de abalar e baralhar.
Mas mais do que tudo, e como não podia deixar de ser, há aqui um amor absorvente, vivido numa medida maior e com contornos de tragédia. Lucy e Gabe conheceram-se a 11 de Setembro de 2001. Ainda assim, e que por mais que se amem, anos a fio, são pessoas diferentes e seguem - separados - vidas independentes.

"(...) sempre me pareceu que pertencias a ti próprio e que te emprestavas a mim quando te apetecia; nunca te possui completamente"

Mas quem possuí quem, se por vezes é tão difícil possuirmo-nos a nós mesmo!? É nessa dificuldade que Lucy avança com a sua vida e conhece Darren. E toda essa parte mais cor de rosa foi deliciosa de ler, tem detalhes muito bem conseguidos e cenas muito reais. No entanto, o que incomoda (e não sei se essa é a palavra certa) é percebermos que toda a narração é dirigida a Gabe, como se Lucy lhe relatasse a sua vida, numa carta sem fim, anos e anos seguidos.
Gabe é um fantasma maior e assombra todas as outras coisas: a maternidade, a carreira, o casamento ou a família que parece estável e completa.

"Vemos tudo através do filtro dos nossos desejos e arrependimentos, das nossas esperanças e medos."

Para além dos filtros e dos arrependimentos em que o livro nos faz pensar, leva-nos igualmente a reflectir na forma como as relações nascem e se desmoronam, e o difícil que é encontrar o equilíbrio.

Foi uma boa leitura e recomenda-se, seja para leitores apaixonados ou corações despedaçados.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

«Voar no Quarto Escuro» de Márcia Balsas :: Opinião



"Há mais calma na sinfonia de uma casa abandonada, do que no silêncio familiar do medo."

No desempoeirar de memórias e com personagens decididas a pisar no passado, Balsas leva-nos a diversos quartos escuros, mas talvez nenhum nos prepare para as bofetadas, mesmo às claras, que nos vai dando durante a leitura. 

"Os primeiros tempos de tratamento foram duros: sempre atordoada, um nó no pensamento, a cabeça vazia como se uma equipa de limpeza lhe tivesse esfregado o crânio por dentro. A brilhar como uma pista de gelo. Deixou deixou de ser ela. Se calhar por isso, tudo melhorou na sua vida. (...), e nada lhe tirava o sono à noite."

Com uma escrita seca e acutilante, dá-nos cenários muito transparentes enquanto nos envolve num labirinto de sentimentos e emoções de mulheres, cheias de pessoas que lhes passeiam por dentro e que se cruzam nas arestas vivas e tóxicas do mundo do trabalho. 

Há cenas bastante bem conseguidas, sejam no escritório - sempre com um humor retorcido; seja a reforma de sexo entre Adelaide e Jorge ou a barricada de livros entre este mesmo casal. As angústias de Ema ou a violência contra Eduarda. São imagens que perduram na cabeça do leitor pela caracterização inteligente que adensam cada personagem. 

"(...)um bebé sozinho, fechado numa caixa, rodeado de velas. (...) nenhuma da família da defunta. «Defunta.» A palavra a bailar-lhe na cabeça. Como se chama a um bebé morto antes de nascer? (...)
Agora estava tudo acabado, tudo debaixo de uma carpete verde, fofa. (...)
«Branco não!», recusa Ema perentória, a quem os caixões para bebés lembravam bolos de noiva mal acabados."

Em todas as mulheres é fácil reconhecer traços que se confundem com os nossos ou que outrora já pautaram as nossas vidas. Como Beatriz, que na erosão dos dias vê a sua angústia, tristeza e solidão aumentadas, mas retratadas pela autora de forma muito privada, no entanto, quando se revelam os seus textos, já mais para o final, a metáfora usada dá toda uma outra dimensão à solidão, ao medo e às diferentes prisões que permanecem em toda a narrativa.

"Procrastinação. (...) Envergonha-se das coisas que lhe ocorrem, materialismos que não a definem, só a atormentam por definirem o mundo. (...)
Dar tempo ao tempo, conceito obsoleto. Toda a ansiedade é destrutiva."

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

«As longas noites de Caxias» de Ana Cristina Silva - Opinião


«As longas noites de Caxias» de Ana Cristina Silva é um livro necessário essencialmente para recordar a maldade inerente à polícia política do Antigo Regime, mas mais do que tudo expor a maldade no feminino, daí que a PIDE venha na imagem da agente Leninha. No entanto, para deixar uma marca maior no leitor a autora podia ainda ter encruado mais o discurso, fosse no caracterizar das personagens fosse das descrições das longas noites. Ainda assim é um documento extremamente importante, e interessante, para se pensar a perseguição política e a humilhação a que tantos homens e mulheres foram sujeitados. Em certas partes, a linguagem com um leve toque poético não lhe cai mal, mas distraí o leitor do importante: a violência, o ódio, a injustiça e o clima de medo. 

"Como represália, gritaram-lhe que fizesse a estátua: «Agora vais fazer de Cristo». Um dos agentes riu-se e os outros pegaram-lhe nos braços. Laura sentiu um calafrio, uma horrível sensação causada pelo toque das mãos suadas na sua pele. Bastavam poucas horas naquela posição para ficar rígida como um cadáver. (...) 
As noites pertenciam às agentes femininas que as impediam de dormir. (...) - Leninha, Odete ou Lourdes - ia batendo com  moeda debaixo da mesa. Aquele ruído tinha o som de um trovão numa penumbra de profundo silêncio."

Há um constante duelo entre Laura e a agente, no entanto, a narrativa segue um outro rumo a partir do momento em entra mais na vida de Leninha e vemos que a sua luta é muito anterior à PIDE e percebemos o seu caminho pela violência, trazendo quase que uma justificação. 

"No dia em que Salazar foi a Setúbal e beijou Maria Helena na testa, o seu pai deu uma tareia à mulher."

Nestas descrições de época, retratando as décadas de ditadura e a necessidade de deixar muitas palavras rentes à boca é que conhecemos o outro lado, o de Laura, a jovem a quem é dada a oportunidade de vir para Lisboa estudar Direito e que por aqui, anos mais tarde, entra na luta e na resistência estudantil e é com ela que a autora nos a pensar na sobrevivência e na superação do trauma. Se é que é possível,  como e com que limitações.

“A vigilância praticada pelos agentes da PIDE era um serviço de Estado Português. O seu propósito secreto era o de que as pessoas deixassem de ter pensamentos para se transformarem numa frágil teia de espírito permeável ao terror.”

Quase no final, o testemunho da agente, carregado do palrar patriótico e a justificação pela lealdade e cumprimento de ordens, juntamente com nenhuma procura por redenção ou perdão, intensifica os traços psicológicos da personagem ligando-a à enorme desumanização de todos os regimes. 


«Crónica de um Vendedor de Sangue» de Yu Hua - Opinião


Comecei com bastante entusiasmo a leitura deste tão aclamado autor chinês, no entanto, rapidamente percebi que seria difícil manter a vontade em continuar.
Na narração dos acontecimentos é constante a repetição de ideias e é utilizado um tom quase infantil, apesar da dureza que envolve a vida dos personagens.

Faço uma pausa e vou ler sobre o autor e a sua obra, há motivos para que escreva assim, supostamente na sua língua de origem funcionará melhor e o próprio também pretende esse registo para que até o público mais jovem chegue aos seus romances e conheça o percurso político e sócio-económico da China.

Volto à leitura e sinto, o que parece ser uma necessidade, a de identificar muito bem cada personagem, cada fala, cada atitude, e por isso continua a repetição dos nomes dos personagens, que me cansaram desde as primeiras páginas. Apesar de também para isso existir explicação que se encontram nas notas de tradução. 

Avancei mais um pouco, queria ficar a conhecer essa realidade tão miserável que pautou o regime de Mao, mas a forma como as provações do povo são descritas e até as metáforas, em conversas muito simples entre Xu Sanguan e o tio ou a esposa continuaram a não me cativar e até a ilegalidade da venda do sangue não tornou a narrativa mais entusiasmante. 

Gostava de ter avançado na história dos filhos ou da esposa desafiante, pois pelo que leio, existem reviravoltas que dão rumo à história, tornando-a ainda mais negra, mas enquanto esperava e lia, mais exasperava.

«A mulher de He Xiaoyong saiu de casa, bateu com as mãos nas coxas e disse:
"Um descarada que roubou a semente de outro homem e agora vem aqui de nariz empinado."
Xu Yulan respondeu: "Dei à luz três rapazes de seguida, claro que venho de cabeça erguida."
A outra mulher disse: "Três filhos de pais diferentes, isso é orgulho para alguém?"
"Essas miúdas também não parecem ser filhas do mesmo pai."
"Só uma porca como tu é que estaria com homens diferentes."
"E tu, és diferente? Olha bem para o que tens dentro dessas cuecas, isso é uma mercearia, qualquer um pode entrar."»

«Tudo Aquilo Que Não Lembro» de Jonas Hassen Khemiri - Opinião


"O vizinho estica a cabeça, olha por cima da sebe e pergunta‑me quem sou e o que estou aqui a fazer."

É assim que arranca esta narrativa fragmentada, para a qual a capa faz todo o sentido. Um escritor anda em busca de conhecer Samuel, um homem que morrer num trágico acidente. Acidente ou suicídio. Quanto mais ele entrevista e conversa, mais o leitor se pergunta: o que é que estou aqui a fazer? Pergunta essa que vai continuando sem resposta. Bem como conhecermos Samuel ou as outras personagens. 

“Quem decide o que é importante e o que é supérfluo? Quanto a mim, quantos mais pormenores te dou, mais pormenores ficam por contar.” Diz a certa parte uma das raparigas que gostava de estar com Samuel, referindo não por o conhecer muito bem, mas que gostava dele pelo efeito que despertava nela. Porém, os detalhes mais interessantes são sobre assuntos avulso que nada têm propriamente que ver com Samuel ou o seu desaparecimento. Ou a certa parte o assunto da imigração e dos refugiados, mas mais importante situações de mulheres vítimas de violência doméstica; dando-nos a perceber que essa realidade em Estocolmo é semelhante à de cá.

"As chamadas continuaram. Eu traduzia para mães que precisavam de saber o porquê de os seus pedidos de apoio terem sido recusados. Haviam homens que queriam recorrer de condenações por agressão. (...) Havia mulheres que contavam que, quando ele guiava bêbedo, ele não as deixava pôr o cinto de segurança; quando eu repetia a comida, ele obrigava-me a comer a comida do gato; (...)Havia mulheres que contavam que ele tinha uma rotina, (...), punha depois determinada canção a tocar e assobiava a melodia ao mesmo tempo que procurava as luvas. (...) Os homens eram advogados de Jämtland, atletas vencedores de medalhas de triatlo (...) os homens era vendedores de fruta sírios, violinistas belgas, alcoólicos de Skäne. Mas os homens não tinham importância nenhuma. (...) Eu queria era ajudar as mulheres." 

Foi Laide, a paixão de Samuel, a mulher jovem que se interessa e quer marcar a diferença junto destas pessoas, que me despertou mais interesse, ainda assim é tudo sempre dito por outros, sem acção directa entre as personagens, ou seja, a interacção está toda no passado, recorrendo à memória; há uma ausência de acontecimentos que ultrapassem o encontro para a breve entrevista com o escritor e isso torna-se cansativo, repetitivo. Mesmos alguns acrescentos que são ditos ou deixados a adivinhar sobre Samuel não me motivaram para terminar o livro, senti que a mais de meio livro lido não estava ligada a nada. 


quinta-feira, 22 de agosto de 2019

«Eu sou Bolaño, o escritor e o mito» - Opinião



“Eu Sou Bolaño” é uma compilação de textos, escolhidos por Celína Manzoni, que visam, através da perspectiva de vários escritores e textos inéditos de Bolaño, uma breve reflexão sobre o romance, a escrita e a sua biografia, afirmando mais uma vez o fenómeno que o escritor representa. Este conjunto de textos dispersos, oriundos de vários países, pretende proporcionar aos leitores de Bolaño mais motivos para compreender e apreciar a sua obra. 

Para quem como eu ainda não se estreou nas aventuras literárias deste autor, esta compilação foi acima de tudo um confirmar da fama e do traço de génio que lhe é reconhecido e ficar ainda mais indecisa por que obra começar. Essencialmente era isso que eu procurava, um guia de leitura para as obras megalómanas de Bolaño, no entanto, perante o avanço nesta compilação qualquer potencial leitor se sente perdido no universo selvagem deste autor ou a perguntar-se pelas suas capacidades para entender só metade daquilo que os estudiosos aqui indicam. Também eles continuamente boquiabertos. 

Logo ao início, no texto "Bolaño por Bolaño", surge a obra «A pista de gelo» que o próprio autor resume numa simples frase, : "(...) em La pista de Hielo (1993), falo da beleza que dura pouco e cujo o final costuma ser desastroso." Mais à frente, um curto texto suscita-se a curiosidade do leitor para o leque sumptuoso de personagens deste romance e parece-nos uma boa forma de entrar no universo do autor, entretanto, rapidamente nos assaltam com elogios ao complexo e provocador romance: «A Literatura Nazi nas Américas» cruzando-o com inúmeras outras referências literárias, deixando desde logo o leitor meio perdido no cruzamento de tantos livros. Mas a dúvida aumenta ainda mais com o altamente destacado «Os detectives selvagens», no entanto, a complexidade e as inúmeras páginas recheadas de metáforas e referências, bem como a estrutura que se desmonta e transforma e integra e desintegra em personagens e História, faz-nos pensar uma leitura inalcançável e muito difícil de decifrar.

É essencial perceber na intrincada e complexa obra do autor a luta contra o esquecimento, necessitando para isso de incluir a política na literatura. A forma como o faz é única e suplanta o óbvio ou o simples registo do real. Bolaño mune-se de personagens que se alimentam umas nas outras e reconstrói a memória individual e colectiva assente no horror e na bizarria do lado obscuro do ser humano como resposta. É isto que lemos nos vários ensaios sobre a obra de Bolaño, para além do reconhecido brilhantismo literário e da constante necessidade de analisar e interpretar a sua obra, nomeadamente os romances póstumos.

*

Excertos

Manzoni sobre «A Literatura Nazi nas Américas»

"Quando a história aceita como consumado o esquecimento de alguém cuja «passagem pela literatura deixa um rasto de sangue e várias perguntas feitas em silêncio» (186), a narrativa passa a converter-se num presente e o narrador em protagonista. Se a História não pode formular perguntas adequadas ou é incapaz de encontrar respostas para o silêncio dos desaparecidos, a poesia pode converter-se numa sua aliada.»


María Antonieta Flores sobre «Os Detectives Selvagens»

"As diversas histórias e personagens que se entrecruzam ou se desencontram constituem peças de uma colagem, os fragmentos de um todo impossível de alcançar. (...) Todo o tecido narrativo cria uma atmosfera vaga, de falta de certeza. O itinerário da história é marcado por palavras, tempos e espaços bem determinados que, apesar disso e paradoxalmente, constroem uma estética de imprecisão. (...)
Então, o leitor é obrigado a converter-se também em «detective» que não pode garantir o que está por detrás da janela imprecisa. (...)
Esta imprecisão das personagens que estão ali no texto, juntamente com a visão múltipla das múltiplas personagens, leva-nos a pensar que no fundo não existem protagonistas e que se trata de uma forma de elaborar narrativamente o conceito e tema caro à pós-modernidade: a dissolução do sujeito."


Enrique Vila-Matas no texto "Bolaño à distância" sobre «Os Detectives Selvagens»

No Bolaño de Os Detectives Selvagens há algo de desesperação maníaca. Escrevo isto e pergunto-me se na realidade o desesperado maníaco não serei eu. Queria falar com leveza e com a máxima agilidade da extravagância e do efervescente magma linguístico do romance de Bolaño para poder passar rapidamente à terceira secção interessante deste livro - a da estrutura originalíssima - (...).
Como são as coisas. Voltei a aproximar-me de Bolaño (...) - e, no entanto, vi-me aqui convertido num homem que ficou enredado no mundo da multiplicidade de Bolaño, esse escritor que vê o mundo como um enredo, um emaranhado, um novelo."


Alejandro Zambra sobre «Tres», um livro de poesia de Bolaño

"A extrema consciência compositiva que a obra de Bolaño entranha e por vezes ostenta, as suas raízes líricas ou o simples facto de os seus romances, como a boa poesia, conservam essa dose de ilegibilidade que apela à releitura (...): Bolaño, como poeta, é um excelente narrador, mas não há dúvida de que como narrador é um excelente poeta."


Mihály Dés sobre «Putas Asesinas»

"Duas qualidades extraordinárias caracterizam a narrativa de Roberto Bolaño (...). A primeira é a capacidade de criar importantes vozes narrativas que se fazem com a trama e se convertem no núcleo da história. A segunda consiste em outorgar uma quarta dimensão às suas narrações, uma espécie de abismo temporal através do qual tudo se vê como irrecuperavelmente perdido."


Bolaño no discurso de agradecimento do prémio Rómulo Gallegos

“então o que é uma escrita de qualidade? Pois, na verdade, o que sempre foi: saber enfiar a cabeça no escuro, saber saltar no vazio, saber que a literatura é basicamente um ofício perigoso. Correr pela beira do precipício (...)"


quarta-feira, 21 de agosto de 2019

«Um estado selvagem» de Roxane Gay - Opinião


Há muito que queria ler este livro e há muita mais ainda que não me acontecia ler um livro tão sofregamente, sem parar para pesquisar fosse o que fosse a que o livro apelasse. Li, sublinhando apenas uma frase: "Os úteros das suas mães eram países férteis em si mesmos."
E no final, é a frase que mais me faz sentido para resumir todo o drama que Roxane Gay narra, estão essencialmente em causa as relações familiares e o peso da ligação a um país ainda em estado selvagem. No entanto, é toda a violência exercida sobre Mireille Duval que desperta outro tipo de estado selvagem e um dúvida: pode um ser humano sobreviver a um trauma deste tamanho e reerguer-se!?

Mireille é descendente de haitianos, imigrados nos Estados Unidos da América, no entanto, a certa parte da vida os pais regressaram ao Haiti e fazem uma vida distante da maioria dos haitianos. Num país onde grassa a miséria, a violência e a morte, uma vida próspera e abastada, cheia de gente altiva torna-os num alvo permanente, onde a corrupção e os sequestros pretendem enviar uma mensagem muito clara: ninguém está seguro. Isso torna-se claro, quando de visita ao país, Mireille é raptada e o grupo sequestrador exige um milhão pela sua libertação. 

O sequestro desta mulher e os horrores por que passa não são descritos de forma chocante, de forma só a informar do que se passa, são antes descritos morosamente, pensados para encontrar as palavras certas para não descrever de rompante, mas ainda assim estar lá tudo claramente. Não sei se me faço entender, é preciso ler para sentir o nó que nos fica ou os olhos rasos de água. As imagens são fortes, essencialmente pelo sentido da descrição, pelo todo. O leitor percebe, percebe muito bem como Mereille é violada, humilhada, dilacerada, transformada em restos humanos. Percebe, lê, emociona-se e chega a pedir uma pausa. 

Entre os relatos de violência, existem viagens ao passado, momentos lúcidos em que Mereille recorda a família, o Haiti, a sua vida e deixa perceber que o Haiti é um local em transformação e não necesariamente para melhor. O sentimento de pertença é complexo e isso também nos é passado pelas descrições que ela faz dos homens que a cercam. Pessoas sem nada, logo sem nada a perder. 

"Os bairros de lata são um labirinto interminável de ruas e vielas (...). Os blocos transformam-se numa montanha com escadarias escuras, estreitas e serpenteantes que mantêm tudo unido. Muitas vezes o céu é bloqueado por um emaranhado espesso de fios eléctricos. (...) As mulheres raramente andam sozinhas pelas ruas. Não é seguro, nunca. (...) As ruas estão pejadas de lixo (...) por vezes uma galinha ou uma cabra perdida caminha cuidadosamente pelas ruas.(...) O ar é opressivo, com o cheiro de demasiada gente num espaço reduzido. (...) Corri por estas ruas e pensei: «Este é o Haiti que nunca vi ou conheci.» Era um Haiti que ninguém deveria ter de conhecer."

A dignidade e a humilhação vivem a paredes meias com toda narração da primeira parte, durante o cativeiro de Mireille. Numa segunda parte, tentamos sofregamente responder positivamente à pergunta que dá ritmo a todo o enredo. É nesta busca, também ela desenfreada, por superação e sobrevivência que conhecemos os medos e os fantasmas que perseguirão esta mulher para o resto da sua vida, mas ficamos também a conhecer outra personagem forte, Lorraine. Outra persoangem arrebatadora.
Há mais personagens e mais lados a explorar, o do pai ou da família Duval, que são uma caricatura dos imigrantes abastados que vivem confortavelmente ao lado da pobreza extrema; existe o marido, típico americano dos filmes romântico de Hollywood... todos eles passam as suas agruras, mas nenhum me prendeu a atenção, eu só queria mesmo perceber tudo o que Roxane tinha reservado para Mereille. 

*

Vale a pena ler a entrevista à autora, aqui.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

«Cada dia é um milagre» de Yasmina Khadra - Opinião


Estreei-me em Khadra com este «Cada dia é um milagre», que pelo título já deixa adivinhar um pouco do seu conteúdo e pelo título original: “L'équation africaine”, é ainda mais notória a equação em causa: o valor da vida e a importância das pequenas coisas, dos pequenos milagres de cada dia e o saber agradecer as benesses de certas localizações geográficas.

Kurt, um médico endinheirado que vive confortavelmente no silêncio alcatifado de um bom condominio vê a sua vida estilhaçada pela morte da mulher. E consequentemente pelo desinteresse e insensibilidade dos outros perante a sua dor.

"(...)Jessica reduzida a um simples despojo coberto com um lençol branco."
 "Eu estava em choque. triturado por uma tormenta que me aspirava sabia lá para que abismo..."

Desde cedo há um toque de dramalhão na escrita de Khadra, mas misturam-se muito bem com descrições bem conseguidas (do sogro, por exemplo) e uma forma de falar de sentimentos que mostra como a dor alheia causa pouca empatia e em parte por ser tão difícil falar da dor, explicá-la, catalogá-la. Nisso, há passagens na sua escrita que são exímias em ler-nos a alma.

Rapidamente esta vida de zebruras (palavra aprendida neste livro) atinge picos nunca antes imaginados quando Kurt aceita a proposta de Hans Na segunda parte do livro, Blackmoon, Kurt e Hans vêem-se apanhados na teia da miséria humana que se alastra nesse colosso que é o continente africano, alimentado diariamente a doses elevadas de violência, fome, corrupção e guerra.

O barco em que viajavam é atacado e os amigos, Kurt e Hans são raptados. O interesse neles é dinheiro, como é costume dos regastes, mas cedo se percebe que estão entregues às oscilações dos humores figadais de um pirata filosófico que tem todo um leque de teorias e mão pesada na forma de os violentar e humilhar.

"(...) só sinto desdém pela sua autoridade de bandida, nojo pela espécie de ogro paranóico que se esconde por trás da sua lanterna, ódio frio por todo esse bando de degenerados à solta na natureza como os germes virulentos de uma pandemia..."

Há nestas descrições um lado quase poético ao descrever a violência que existe em África, tão visceral e crua como a beleza intemporal e virgem da sua Natureza, sempre presente em tudo. Há uma veneração por África que a torna personagem, aliás, em parte essa personagem é Bruno, um anacoreta itinerante devoto a África.

"África é uma certa filosofia de redenção."

Na relação de cativeiro, conhecemos esse peregrino poeta, emocionado e embriagado pela própria prosa, que enaltece África e as suas gentes, mas também a sua condição de andarilho perdido por um país que lhe mostrou o que outras zonas boas do mundo não conseguiram e o fez gente.

Há um outro personagem que dá dimensão humana às crises inúmeras que acontecem por todo o continente, o Capitão encarna todos aqueles que foram escolhidos pela violência, aqueles a quem a vida não deixou outro caminhão se não o da força e do medo. Ser-se temido é por vezes a forma de se manter vivo, mas a que custo? É também esse lado que o autor quer salientar e tornar menos abstracta aos olhos de quem o lê.

"Desde os tempos remotos que o Homem, desconfiando daquilo que não o faz sofrer, corre atrás da própria sombra (...) incessantemente esquartejado entre o que acredita ser e o que desejava ser, esquecendo que a maneira mais saudável de existir é, muito simplesmente, continuar a ser ele próprio."

Em suma, este é um livro que explora sentimentos opostos e nos confunde com tantas sensações divergentes. Se por um lado Khadra consegue parágrafos brilhantes que espelham uma análise e um entendimento brutal da humanidade e da sua complexidade, bem como o choque de culturas e o peso do homem branco em África; por outro, a persistência de cenários previsíveis cansaram-me imenso.

Ao longo de todo o livro existem falhas de tradução que são notórias. Há parágrafos muito bem conseguidos, onde se nota um trabalho soberbo da tradutora em fazer soar bem a poética do autor e noutros parece ter-se usado o google translator - não me sai da cabeça (e já o li há meses) - "vou tomar um bom chuveiro". Não sou uma entendida em tradução, nem nada que se pareça, mas há falhas flagrantes.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

“Alma e os mistérios da vida”, de Luísa Castel-Branco - Opinião


A minha mãe pede-me um livro e é assim que chego até este «Alma». Cheguei e fiquei até ao fim e não sei bem porquê, pois é uma leitura completamente fora das minhas escolhas, mas achei que um país mergulhado nas trevas da ditadura desse uma boa personagem, mas o país não se revela e a ditadura também não. São poucas as linhas que o descrevem, tal como a personagem que dá nome ao romance. Alma é uma personagem quase invisível, descrita pelas palavras dos outros e é a vida dos outros que vamos seguindo. 

"A sala estava à cunha e nem uma mosca zumbia, o ara estava pesado e peganhento. Com umas voz de cana rachada, tão fina como o bigode, o senhor inspector, sujeito atarracado, que tinha semelhança com o retrato do grande presidente, o Salvador da Nação, cujo o rosto presidia a todas as aulas numa moldura escrupulosamente limpa, procedeu à leitura das folhas de exame..."

Esta descrição, quase nas primeiras páginas, dão-nos o ambiente do Portugal de 70, mas o restante escrutinio passa rapidamente para as vidas de um leque amplo de personagens tapando a vida propriamente dita de Alma. No entanto, o tom em que o povo é descrito retrata muito bem a portugalidade da época e alguns traços que ainda hoje persistem.

"No Inverno, escondidas atrás das cortinas, espreitavam como gato castrados, e assim podiam recitar de cor a lista de quem tinha ido ao confessionário nos últimos anos..."

"(...) mesmo depois da Revolução, e durante uma época em que o ódio era o estrume das terras..."

Em parte, este romance alimenta-se muito desse estrume inerente à alma humana, uma estranha necessidade de dificultar a vida alheia, especialmente nesta época e essencialmente as vidas femininas, entregues aos caprichos das heranças de família e as falsas cortesias de homens que não as queriam, mas as precisavam desposar. Assim, as almas que povoam este livros estão entregues ao sofrimento. Seja ele por amor, ódio ou devoção.

"(...) e uma vez mais agradeceu ao bom Deus nunca lhe ter dado a conhecer o amor ou a paixão, livrando-o assim de ser barro nas mãos do destino."

Fruto da época, o medo também assume destaque: "O medo não morre de idade nem é passível de se perder nas brumas das memórias". Sentir medo, incutir medo, ter fé por ter medo... 

Existem, em certas passagens, descrições bem conseguidas das personagens, mas falta muito para ser um livro apetecível de ler e com um enredo bem entrelaçado.

"Tinha os olhos descaídos, como que prontos a tombar em cima da mesa ou de qualquer outra coisa, a todo o momento. Quando era criança, até que lhe emprestava um certo ar encantador, mas quando cresceu o rosto acabaria por descair como os seus olhos (...). Recordava um buldogue em poisio, um animal enroscado em si mesmo, cheio de pregas e mais pregas."



domingo, 19 de maio de 2019

Opinião "Acredita em mim"

Tenho andado distante dos livros. Se 2018 terminou com poucas leituras, estes primeiros meses de 2019 têm sido um deserto desprovido de oásis literários. Não tenho tido vontade, tempo ou cabeça. Tudo o que tenho começado a ler, fica pelo caminho. Pior, nem para livros me apetece olhar. Sinto que os estou a trair e faço os possíveis para que não reparem em mim quando passo os meus momentos de lazer a ver séries na Netflix mesmo em frente à estante. Vá, eu sei que os livros não me estão a julgar por ser uma má leitora MAS EU SIM.


Quando este "Acredita em Mim" me tocou à campainha eu andava a acalentar uma leitura que me submerge-se ao espírito "nem vou sair daqui para comer". Em 2017 JP Delaney fez de mim cativa com a leitura de "A Rapariga de Antes" e dei comigo a tecer enredos imaginários enquanto me deliciava com a loucura que foi visitar o Nº 1 de Folgate Street. Este "Acredita em mim" levou-me mais longe, levou-me a não conseguir acreditar nos meus próprios pensamentos e nos caminhos que o enredo me fez tecer mentalmente.
Dei por mim a pensar que por momentos estava tão perdida com o Claire, tão ludibriada com o enredo que não sabia bem quem dizia a verdade.
Acho que devia ter lido um romance e não um thriller que me entrou pela cabeça a dentro ao ponto de acordar a pensar na personagem e na resposta à pergunta "mas quem é o culpado?"
Mas ainda bem que o li porque terminei com o pensamento "Em livros que se matam pessoas, ressuscitam-se leitores"

Conhecemos Claire, uma actriz inglesa a viver em Nova Iorque que, por entre aulas de representação e uma carreira que teima em não arrancar, vai ganhando dinheiro para a renda com um esquema ludibrioso e pouco legal. Claire, na sua qualidade de mulher bonita e actriz versátil, representa o papel de sedutora perante um homem casado de modo a leva-lo a incriminar-se por infidelidade, o que garante à esposa e à empresa de advogados para o qual trabalha munições suficientes para avançar com divórcio. 
Mas o filme sobre a volátil mas carismática actriz a sobreviver na selva nova iorquina muda de género quando o seu mais recente alvo não sucumbe aos seus encantos e Claire se vê drasticamente arrastada para um caso de homicídio onde tão rápido lhe apontam o dedo com lhe pedem ajuda para encontrar o culpado.

"Sou só eu que faço isto - que sinto que estou constantemente a ver-me no filme da minha própria vida? Quando o pergunto a amigo, a maioria diz-me que sim sou só eu. Mas devem estar a mentir. Porque outra razão quereria alguém ser actor senão para poder editar a realidade"

Repleto de enganos, dramas, mentiras, macabrices ou simplesmente paranóia, este "Acredita em mim" pode ser um daqueles que se adora ou odeia. As reviravoltas, o "é e não é", são interessantes mas não nos deixam confiar em ninguém, pior, não nos deixam simpatizar com ninguém.
Logo de início li uma frase que me deixou a pensar e me acompanhou durante toda a leitura. 
"Quando as pessoas começam a pensar que têm o direito de procurar a sua felicidade em detrimento das normas sociais, acaba-se com um pequeno mas crescente número nas margens, pessoas que não entendem por que razão não haverão de satisfazer também os seus instintos mais negros e predatórios"

Acho que todos os leitores de thrillers e policiais têm de ter algo dark para lerem com tanta facilidade estas histórias, para conseguirem encontrar caminhos alternativos que o autor não seguiu.
Na realidade acabamos por nos meter na pele das personagens, exactamente como Claire.

"Representar não é fingir nem fazer-se passar por. Representar é fazer"
E é com esta frase que vos deixo, espero eu, com vontade de pegar no novo livro de JP Delaney. 
Este "Acredita em mim" requer um exercício de confiança. 
Abram o livro e deixem-se cair lá dentro.

PS: prometo voltar às leituras e às opinião mais completas e interessantes de se lerem.

"Acredita em mim" é uma novidade

quinta-feira, 18 de abril de 2019

«Princípio de Karenina» de Afonso Cruz :: Opinião



O princípio de Karenina ou a imperfeição que é querer medir a felicidade. 


"A imperfeição salvar-me-ia com igual intensidade e na mesma medida com que me faria sofrer"

É nesta medida dúbia, tendo na imperfeição a salvação, que um homem narra a sua história, numa longa carta de apresentação, à filha que não viu crescer. Explicando-lhe "uma orientação invisível e subtil das nossas vidas através dos afectos", mas também o drama de ter medo do desconhecido e como isso limita o tamanho do mundo; mundo esse sempre estrangeiro como o das mulheres que mais amou.

Essa aversão ao estrangeiro, as costas voltadas ao infinito que é uma janela aberta e toda as fronteiras que mais parecem muralhas, são heranças que cedo sabemos lhe terem ficado do pai. Heranças angustiantes, marcadas por sentimentos fortes que o sufocaram durante décadas. 

"Lembro-me muito bem dessa refeição em que o Dr. Vala disse à mesa que as batatas vinham da América do Sul. As emoções, positivas ou negativas, são uma máquina de impressão. Todos os acontecimentos tendem a desvanecer-se, mas a emoção grava-os na pedra da realidade, da nossa realidade (...) O cheiro das batatas cozidas estragava-me o nariz, (...). Olhei de soslaio para o meu pai, tentando perscrutar alguma reacção sua que confirmasse aquilo que eu acabara de perceber, a imoralidade de certa comida que mastigávamos e engolíamos (...)
- O que é que se passa? O menino está pálido.
Estava, efectivamente. Como se enfia na boca uma coisa de tão longe, com um oceano pelo meio, como se mastiga aquela distância toda?"

É essa distância, difícil de mastigar e, mais ainda de engolir, que o assombrou a vida inteira. Vida essa falsamente protegida pela imponência dos muros da moralidade, pregada entre gerações como estandarte contra o Mal.

"Um herói ou um santo só existe se confrontado com o Mal, só existe depois de emergir ileso da barbárie, e eu queria ser um santo como os que ouvia na missa e admirava nos nichos de pedra e nos frescos da igreja."

Para além dos santos, também a mãe vivia encerrada nesses nichos. Temente, ausente e de poucas palavras, constantemente esmagada entre a forte personalidade do marido e "a necessária encenação social que nos mantém coesos enquanto comunidade".

São entre estas personagens e outras pontuais que vamos conhecendo a história deste homem e de uma mulher vinda de geografias longínquas. Conhecemos-lhe o amor e os medos e questionamos atitudes de decisões de quem esteve mais perto de uma felicidade maior e a deixou fugir. Será mesmo assim? 
Este, como todos os livros de Afonso Cruz, faz-nos olhar para dentro. São frases pequenas, que parecem simples e que nos arrebatam, puxando-nos para dentro, numa tentativa de perceber mais o que metemos para fora. 
E a certa altura, numa conversa entre miúdos, concluímos que onde não há flores há caminho E que o medo nos pode fazer coxos da cabeça, deformando-nos. E que mesmo deformados encontramos um atalho para a vida.




sexta-feira, 12 de abril de 2019

O Arquipélago do Cão» de Philippe Claudel - Opinião


Um livro SEXTANTE

Pode este arquipélago usar a intensidade sufocante da ilha para se tornar num bom thriller? Philippe Claudel diz que sim e afirma ainda que a investigação atravessa toda a narrativa, não para se desvendar o crime, mas para revelar a mesquinhez e a passividade que altera os homens bons em seres medíocres e corruptos. 

"A morte dos três jovens negros não ocorrera na ilha. O mar abandonara-os na costa como se fossem madeiras que flutuavam. Ninguém os conhecia e as suas vidas de outrora nunca tinham tido qualquer contacto com as vidas dos habitantes da ilha. Só a morte os fizera cruzarem-se, mas isso não era uma razão suficientemente forte para que o quotidiano dos vivos fosse afectado." 

"O Cão está ali (...). Preparado para retalhar a imensidão azul-cobalto, longa e pálida, que o mapa cobre de números, que indicam as profundidades (...). As suas mandíbulas são duas ilhas encurvadas, a sua língua também, e os seus dentes, uns pontiagudos, outros maciços, outros afiados como punhais. (...) A vida na ilha provém do vulcão (...) Chamam-lhe o Brau. O nome tem uma sonoridade bárbara (...)"

«O arquipélago do cão» serve-se da parábola para figurar a actualidade da emigração e apontar o dedo à inércia de uma Europa envelhecida. O autor avisa-nos e coloca-nos naquele local, afirmando que fazemos parte dele. No entanto, a solidão árida e típica da ilha, envolta no odor a peixe e na miscelânea de cheiros de um vulcão adormecido pode não ter esse impacto no leitor.

O Cão, desumanizado pelas estações agrestes e pela emigração, simboliza uma comunidade de pessoas que estão conformadas e acomodadas à vida que levam, por isso, o autarca, o padre, a velha professora e os pescadores encarnam mais do que uma personagem, eles são o espelho das camadas da sociedade. Serem anónimos é o que lhes confere transversalidade, para que o leitor encontre semelhantes e desvende as metáforas inerentes às suas palavras, descrições e atitudes. 

"- Que querem que vos diga? Pensam que porque sou padre sei mais do que os senhores? (...) Se me fizessem perguntas sobre abelhas, poderia responder-lhes (...) - Aprendi muito com elas e o milagre do mel continua a deslumbrar-me. Se Deus existe está no mel! Foi isso que descobri em sessenta e nove anos de vida e cinquenta de sacerdócio. (...)
A religião cansava-o. Havia quem pensasse que ele próprio já não acreditava muito nela. Continuava a fingir, para não abandonar as suas últimas ovelhas, que, porém, chocara um dia durante o sermão, ao dizer-lhes que Deus partira, num regime de pré-reforma. (...) Está num processo de cessação progressiva de actividade. E a culpa é nossa."

Sempre a culpa. A tragédia grega envolta em culpa cristã. E se até Deus rescinde que sobra àquela comunidade? Um apelo à consciência? Ou um elemento que os venha espicaçar? ... sob a aparência de funcionário dos correios dormita uma moreia... e o que virá ela caçar com o seu olfacto apurado?

quarta-feira, 10 de abril de 2019

«Até ao fim do mundo» de Maria Semple :: Opinião


"Numa colina de Seattle, de onde se avistam ferry boats a deslizarem como caracóis na água, uma mãe peculiar, Bernadette Fox, evita conflitos e batalhas de melgas, que ela esmagaria só com um esgar e o seu toque de insólito. Com isso e com cartazes gigantes que deslizam em avalanches de lama.
INSÓLITO?
A maioria dos acontecimentos deste livro são insólitos e excêntricos!
A EXCENTRICIDADE cai aqui nas páginas deste livro como chuva, que tipicamente, cai em Seattle.

Mas passemos ao enredo. Bernadette comanda este show de marionetas peculiares. Manjula, a secretária virtual, sediada algures na Índia está encarrega de organizar uma viagem idealizada por Balakrishna ou Bee, a filha de Berdanette e do guru da Microsoft. Juntos, em família, eles pretendem chegar à Antártida, mas antes há que desmistificar o tumultuoso Estreito de Drake que já existe entre eles.
Isto tudo sem esquecer o naipe de estarolas que é a comissão de pais do Colégio Galer Street, especialmente com Soo-Lin Lee-Segal e Audrey Griffin, as melgas de eleição. 

Bernadette é louca? Talvez.
A sua filha é excêntrica? Pois claro. Vá lá ser-se de outra forma com uma mãe destas.
Bernadette é genial? Isso é de certeza. E o projecto Vinte Milhas (que gostava de perceber se existe!) é uma ideia maravilhosa e genial.

«Até ao fim do mundo» é uma leitura obrigatória? Não é, mas devia!
E o título também devia ter respeitado o original. «Para onde foste Bernadette?» é o enredo mais presente, já que esta mãe tem mais do que uma fuga em curso. Eu sei que a Antártida pode ser o fim do mundo, mas a viagem desta família começa dentro de casa, nas dinâmicas familiares e nas suas fugas excêntricas, mas iguais a tantas outras.

Se o enredo é estranho? Totalmente. Tal como a organização das vozes que o narram e o tipo de texto que usam, desde e-mail's a relatórios. Mas é tudo muito bom e faz uso da excentricidade da melhor forma possível. Maria Semple tem o dom da criatividade e suga o leitor para esta história louca e imparável. E sem esquecer um roteiro musical que acompanham mãe e filha, que estava a passar por uma fase «Abbey Road». 

"Quando começou «Here comes the sun», o que é que aconteceu? Não, o sol não apareceu, mas a mãe abriu-se num sorriso como o sol a trespassar as nuvens. Sabem como nas primeiras notas daquela canção há algo na guitarra do George que é tão cheio de esperança? Era como se, quando a mãe cantou, também ela estivesse cheia de esperança. Até acertou nas palmas irregulares durante o solo de guitarra (...) Por isso, quando chegou àquele medley fabuloso, a mãe e eu cantámos a acompanhar «You never give me your money» e depois «Sun King», que a mãe sabia, mesmo a parte em espanhol, e ela nem sequer sabe espanhol (...)


terça-feira, 2 de abril de 2019

Dia internacional do livro infantil


ilustração de Abigail Ascenso


DIA INTERNACIONAL DO LIVRO INFANTIL - 2 DE ABRIL
A 2 de abril, comemora-se o nascimento de Hans Christian Andersen e foi a partir de 1967 que este dia ganhou o título de Dia Internacional do Livro Infantil, inicialmente a sua comemoração era responsabilidade do IBBY Internacional, mas mais tarde foi alargada a as instituições que queiram chamar a atenção para a importância da leitura e dos livros para a infância, como é o caso da nossa DGLAB
Para celebrar o Dia Internacional do Livro Infantil em 2019, a DGLAB convidou a ilustradora Abigail Ascenso, vencedora de uma Menção Especial do Prémio Nacional de Ilustração do ano passado, para ser a autora da imagem do cartaz. 
Sobre a ilustradora:
Abigail Ascenso nasceu em 1979, em Leiria. Licenciada em Design de Comunicação/Arte Gráfica pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, fundou em 2003, com Fedra Santos, o atelier Furtacores Design e Comunicação, onde tem desenvolvido trabalho nas áreas de design gráfico, fotografia e ilustração infantil. Tem realizado exposições individuais de ilustração infantil e participado em colectivas de pintura. Com o livro Gaspar, o dedo diferente (texto de Ana Luísa Amaral), participou na mostra «100 Livros para o Futuro» promovida pela DGLAB na Feira do Livro Infantil de Bolonha em 2012. Ilustrou já mais de uma dezena de livros para os mais novos. Em 2018 recebeu uma das duas Menções Especiais do Prémio Nacional de Ilustração com o livro “A Noite”, com texto de Manuel António Pina.
Todos os anos é nomeado um país responsável pela mensagem e cartaz internacionais e em 2019 ficou a cargo da Lituânia, o texto e o cartaz são do escritor e ilustrador Kęstutis Kasparavičius. A tradução é de Maria Carlos Loureiro, directora dos serviços da DGLAB e que traduziu recentemente «Depois do Divórcio» da Nobel da Literatura Grazia Deledda (Sibila Publicações). 

OS LIVROS CONVIDAM A UMA PAUSA 

“Tenho pressa! … Não tenho tempo!... Adeus!...” Eis aqui expressões que ouvimos quase todos os dias, provavelmente não apenas na Lituânia, no coração da Europa, mas um pouco por todo o mundo. E também com frequência se ouve dizer que vivemos numa época de excesso de informação, de pressa, de aceleração. Mas quando pegamos num livro, sentimo-nos logo diferentes. É como se os livros tivessem uma característica maravilhosa: ajudam-nos a relaxar. 

Abrimos um livro, mergulhamos nas suas profundezas tranquilas, e esquecemos o medo de que tudo passe ao nosso lado a uma velocidade vertiginosa, não nos permitindo ver o que quer que seja. O livro faz-nos acreditar que podemos abandonar as tarefas aparentemente urgentes. Nele, tudo se passa calma e silenciosamente, segundo uma ordem pré definida
Será porque as suas páginas são numeradas, e porque o virar das folhas, uma após outra, produz um murmúrio tão calmo, tão leve? 

Num livro, aquilo que é já passado encontra-se docemente com o que está ainda por chegar. 
O mundo do livro é um mundo aberto; nele, a realidade convive com a fantasia e com a imaginação. E às vezes não sabemos bem onde observámos - se no livro, se na vida - a beleza dos pingos de neve que escorrem do telhado da casa, ou do musgo que cobre a cerca do vizinho. 

Terá sido no livro ou na vida que provámos as bagas silvestres e percebemos que, apesar de bonitas, são igualmente amargas? E foi no livro ou na vida que um dia te deitaste na relva, ou te sentaste depois, de pernas cruzadas, contemplando o movimento das nuvens que atravessam o céu? 

Os livros ensinam-nos a abrandar, ensinam-nos a observar; os livros convidam-nos, obrigam-nos quase a estar sentados. Sentamo-nos para ler um livro, poisamo-lo numa mesa ou nos joelhos – é ou não assim?! E será que nunca sentiram outro milagre? É que quando leem um livro, ele também vos lê. Sim, os livros também sabem ler. Leem a vossa testa, as sobrancelhas, os cantos dos lábios, que sobem, que descem, mas sobretudo, claro, leem os vossos olhos. E através dos olhos, eles veem… bem, todos sabemos o que eles veem! 

Tenho a certeza de que os livros poisados nos vossos joelhos não se aborrecem nem um minuto. É que quem lê – seja criança ou adulto -, é só por isso muito mais interessante do que aquele que resiste a pegar num livro, que está sempre com pressa e nunca se senta, e jamais tem tempo de observar seja o que for à sua volta. 

No Dia Internacional do Livro Infantil, o meu maior desejo é que existam livros interessantes para os leitores - e leitores interessantes para os livros. Kęstutis Kasparavičius (Trad. Maria Carlos Loureiro)

terça-feira, 19 de março de 2019

«Numa casca de noz» de Ian McEwan - Opinião

"O útero, ou este útero, não é um lugar tão mau quanto isso; assemelha-se ao túmulo, «agradável e privado», num dos poemas favoritos do meu pai.
Eu sei. Os sarcasmos não ficam bem a um nascituro."


Um nascituro "de pernas para o ar dentro de uma mulher" é o narrador deste relato ácido, peculiar e humorístico. O narrador-feto tem uma presença omnipresente e um lugar privilegiado garantindo-lhe saber dos acontecimentos em primeiríssima mão. McEwan consegue, com descrições brilhantes das personagens e de alguns acontecimentos, envolver o leitor nesta massa insólita e alimentar a sua curiosidade, apesar do tem banal do adultério.

"(...) Ouvi dizer uma vez e registei: um parolo de cérebro embotado. As minhas perspectivas tornam-se sombrias. A existência dele impede as minhas legítimas reivindicações a uma vida feliz ao cuidado dos dois progenitores. (...) 
E o Claude, como uma mosca volante (...) Nem sequer é um oportunista colorido, nem apresenta o mais leve indício do patife sorridente, (...) insípido para além da invenção, e de uma banalidade tão requintadamente trabalhada como os arabescos da Mesquita Azul."

Juntamente com Claude, Trudy a desleal, é a mãe deste narrador e congeminam um crime passional: matar John, marido, irmão e pai deste narrador ainda por nascer. 
Sim, leu bem, tal como em «Hamlet»  A mãe tem um caso com o cunhado, o irmão do marido. Tudo nesta noz tem traços de tragédia clássica. Aliás, o marido, é um poeta falhado, um ser envolto em neblinas de tristeza que declama o seu amor sob a forma antiquada de um soneto. Por outro lado, Claude, é um palerma, um parolo, um néscio, podendo-lhe ser atribuído título de bobo da corte.

Mas voltemos ao narrador, já que tudo à sua volta é caótico, desde os planos a que assiste à casa imunda onde a mãe e o tio habitam ou o seu mundo amniótico bem regado a copos de vinho que facilmente passam o ponto da degustação e podcasts sombrios que o vão educando para o estado do mundo.

"Todas as fontes concordam que a casa é imunda. Só lugares-comuns a definem bem: delapidada, a descascar-se, a desmoronar-se. A geada por vezes gela e torna rígidas as cortinas do Inverno; com as grandes chuvadas, os esgotos, como bancos de confiança, devolvem os depósitos com juros (...9"

Melhor que o argumento é a maneira como McEwan o expõem ao leitor. É brilhante a acidez e humor negro com que o descreve, deixando o adultério e até o crime para segundo plano, conferindo ao narrador preocupações existenciais e avaliações criticas do que o rodeia.

"Portanto, estamos sozinhos, todos nós, até eu, cada um a percorrer uma estrada deserta, transportando ao ombro, numa trouxa atada a um pau, os esquemas e os diagramas para um progresso inconsciente.
É um peso excessivo para suportar, demasiado sinistro para ser verdade. Porque havia o mundo de ser apresentar sob uma forma tão dura?"

O narrador é requintado e pejado de carácter, é um ser critico, mordaz e necessariamente dramático:
"Que me envenenem ao teu lado em vez de me entregarem em qualquer sítio
Típica auto-complacência de terceiro trimestre (...) Se a hipocrisia é o único preço, compro a vida burguesa e considero o preço barato. (...) e o meu direito é ao amor de uma mãe e é absoluto. Não vou dar aval às suas maquinações de abandono. O exilado não serei eu, mas ela. Vou atá-la com esta corda fina, pressioná-la, no dia do meu nascimento, com o olhar atordoado de recém-nascido e um lamento de gaivota solitária para lhe arpoar o coração."

Esta visão ampliada da realidade, proporcionada pela membrana reveladora é constantemente conseguida com ironia e erudição, ou não fosse a linguagem de McEwan o melhor deste romance ao conseguir dar a este personagem-narrador-feto-provocador camadas e camadas e personalidade.

"Nem toda a gente sabe o que é ter o pénis do rival do nosso pai a centímetros do nariz. Nesta última fase, deviam pensar em mim e conter-se. Se não em nome do parecer clínico, pelo menos por cortesia. Fecho os olhos, cerro as gengivas, apoio-me às paredes uterinas. (...) a cada movimento de êmbolo, receio que ele vá investir, perfurar o meu cérebro de ossos tenros e semear nos meus pensamentos a sua essência, a nata transbordante da sua banalidade. (...)
Como um sapo a copular, ele cola-se-lhe às costas. Em cima dela, agora dentro dela, e bem fundo. É muito pouco o que da minha mãe traiçoeira me separa do pretenso assassino do meu pai."



segunda-feira, 18 de março de 2019

«A Última Ceia» de Nuno Nepomuceno :: Opinião


"Os italianos chavamam-lhe Il Cenacolo. (...)
Todos a conheciam como A Última Ceia
(...)
Apesar do restauro recente, o estado de degradação não só era considerável, como notório. Partes do desenho inicial do desenho de Leonardo estavam desaparecidas, outras simplesmente tinham sido eliminadas, mas, quando a luz na sala diminuiu ligeiramente, provavelmente devido a uma nuvem que passava lá fora, Sofia deu por si maravilhada.
Pálidas carícias de cor, na sua maioria em tons pastel, ganharam vida perante si. Depois da entrada triunfal em Jerusalém, Jesus reuniu os apóstolos para uma refeição e previu, entre outras coisas, que um deles iria traí-lo. As grandes figuras dos discípulos agruparam-se à sua volta em conjuntos de retórica. Revoltados, gesticularam e argumentaram com uma emotividade nunca antes representada, escutados ao longe pelas montanhas que os espiavam através das janelas entreabertas."


Uma obra de arte icónica, um roubo que supera interesses monetários e uma história de amor fugaz repintam esta última ceia num tom enigmático e conferem-lhe um acabamento de thriller sofisticado. As descrições bem conseguidas e uma escrita que cativa pelo ritmo que impõe, conduz o leitor por uma viagem entre ruas, igrejas, galerias e obras de arte, como se ele próprio viajasse por Itália. E o leitor escolherá: ou vive intensamente a paixão recente entre Giancarlo Baresi e Sofia Conti, especulando as intenções de cada um ou se preocupa em desvendar a motivação por detrás do roubo de tal peça gigantesca e de valor incalculável. Independentemente da escolha, o leitor é sempre acompanhado por bons momentos literários, navegando ao longo de diversos períodos da História, tal como acontece nos últimos dois livros de Nuno Nepomuceno: «A célula adormecida» e «Pecados Santos». 

"Mas a arte é um conceito poderoso (...)
O povo hebraico achou a escultura de um bezerro de ouro tão impressionante, que resolveu venerá-lo tanto como a Deus. Luís XVI perdeu o trono devido, em parte, aos gastos excessivos que fez em quadros (...)
»A arte mão é um animal exótico que se guarde em cativeiro para que possamos admirá-lo todos os dias (...)"

A religião está sempre presente nos últimos livros de Nepomuceno, se bem que neste há um salto, cruzando religião e arte, tornando os crimes mais passionais, conferindo um tom airoso para falar do Cristianismo. Outro detalhe sempre bem conseguido é a forma como o autor aprofunda a vida dos personagens que se repetem e vêm pintalgando as três narrativas. Vemo-los surgir em cada um dos livros sempre com mais detalhes, como se cada um deles fosse um quadro em constante restauro, é assim no caso de Afonso (e de Diana), permitindo ao leitor acompanhar aquela história e os fantasmas que ficam adormecidos e, a quem que não leu os livros anteriores, a querer lê-los para entender determinadas acções dos personagens. 

Outro pormenor que tem marcado estas leituras são os relatos dos crimes ou das cenas de violência e é interessante ver como um autor evolui e com muito menos descrições consegue transmitir violência, pavor, angústia e medo, sem perder humor ou a capacidade de permitir ao leitor várias sensações numa só passagem. 

"O Tamisa serpenteava no meio dos edifícios vitorianos, mas eram os arranha-céus que mais se destacavam. O sempre ácido humor britânico batizara-os bem. Os ingleses chamavam-lhes The Gherkin - O Pepino -, The Cheesegrater - O ralador de queijo -, The Razor - A lâmina de barbear (...)
Antes de começar a falar, Richard lançou um último vislumbre aos arranha-céus. Curioso, era exactamente assim que se sentia, como um aperitivo cortado em pedaços e pronto a ser servido grelhado para o italiano degustar."


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Mais informações em:



terça-feira, 12 de março de 2019

«o escuro que te ilumina» de José Riço Direitinho - opinião


Tenho, necessariamente, de pessoalizar este meu texto sobre o mais recente livro de Riço Direitinho. Sou fã do autor e sigo muitas vezes sugestões de leitura comentadas por ele no Público. Por isso, e por ser fã do fabuloso breviário; só podia correr a comprar e, a ler, este novo livro perante o lançamento tanto alarido se fez. 
No entanto, ao lê-lo fui ficando escurecida com o que me esperava, página atrás de página. O tom encantatório que eu queria reencontrar, apenas me chegava por referências do autor e não pelas suas palavras.
Agora, volvidos mais de seis meses da sua leitura e por motivo deste texto, releio partes, umas ao acaso, outros marcadas e descubro-lhe uns traços que captaram a minha atenção e me puxam para o reler na íntegra.

*

O narrador, homem de meia idade e professor universitário, entediado com a rotina da vida, decide espiar a vizinhança e com os segredos dos outros expiar os seus males. Entretanto vai tecendo um diário e mina-o de referências e citações de outros autores. Se inicialmente me pareceu um exagero, agora em releitura acho-o um detalhe obrigatório para a personagem. Ossos do ofício!

"Contrariando o que disse Herr Nietzsche:
Não são os abismos que só por si nos atraem, são os nossos próprios precipícios que se iluminam com a visão desses outros abismos: dos teus."

Nesses abismos, ficamos logo a saber, existe um alvo: uma mulher, ser observado e desejado, para quem o narrador se dirige: escrevo como se me lesses. (...)
"Ficaram-me os olhos em ti na primeira vez que te vi (...) 
Não sei como exprimir a ideia.
Fui-te construindo: como quem constrói com objectos soltos uma infância que a vida fez esquecer (...)"

Desenamorado da vida, o professor avança compulsivamente com o telescópio e o acto de espiar rapidamente o ultrapassa. 

"As vidas dos outros, olhadas com distância, sempre me interessaram (...) interessam-me como histórias: matéria bruta: acasos. Não me prendem por aquilo que contam, mas pelo que possam esconder: (...) como algo que está ali diante de nós e que não se revela a um olhar distraído: que temos de descobrir: como deve acontecer nas boas histórias."

“O espaço doméstico, esse ringue de silêncios pactuados e de lutas mudas, pode ser o território mais difícil de habitar: mas é talvez dos poucos a que sabemos poder sempre voltar, e é isso que, de uma forma ou de outra, nos conforta e sobretudo nos protege.”

Eu não sei se Riço Direitinho consegue essa tal boa história, mas consegue escamotear as intenções do personagem que mais adiante no relato podem surpreender o leitor. Fugindo desse ringue doméstico e de forma tão ao acaso e quase natural, a vida evolui para a devassidão. 

"É verdade que, depois de termos deixado calcificar a vida (assim como acontece com as torneiras que já não abrem nem fecham, só pingam durante a noite - não, isto não é uma irónica metáfora sobre o sexo conjugal), precisamos quase sempre de um estímulo para ressuscitar."

Contrariando essa calcificação da vida, o professor ressuscita fantasias sexuais que compulsivamente segue, com bazófia e profusão, trazendo constantes descrições de cenas de sexo explícito para a narrativa.  

"A transgressão, mais do que libertar, conduz ao desejo: a fantasia é sempre um acto transgressor, necessário para todas as almas que acreditam - que acreditam no que quer que seja."

Se o personagem transgride fá-lo em plena consciência e coragem. Pode não a ter para a sua fantasia mais concreta: ela, a desejada, mas o abismo profundo da solidão revela-lhe lugares e noites de plurais onde se pode abandonar à libertinagem que Lisboa lhe oferecer e a partir daí detalha um guia com direito a códigos de conduta, dress code e localizações gps. 

"Há nas verdadeiras almas atormentadas um desespero existencial que passa para o sexo (...)"

E é isso, temos aqui uma alma atormentada e não se lhe conhecem mais motivos do que um amor angelical e platónico e umas quantas críticas à sua forma física, erotizando-lhe apenas a inteligência. No entanto, para além da solidão também o sexo é embutido na rotina: sexo desenfreado como catarse para esbater a solidão nos breves segundos de um orgasmo.

As repetidas jogadas sexuais, algumas roçando o ridículo (como a aluna que pede: “Foda-me o cu, professor! E vá declamando um soneto de Bocage." - que professor faz) tornam-se o «pão nosso de cada dia» e o relato vai perdendo intensidade. Repete-se o sexo explícito mas cheio de metáforas, a critica social é mordaz e inteligente, mas o que mais fica é que o sexo tanto exibe o mais moderno de cada um, como esconde medos, fracassos e o peso do envelhecimento. 

sexta-feira, 8 de março de 2019

«O meu amante de domingo» de Alexandra Lucas Coelho - Opinião


"Alguém com uma vingança nunca está só."


Há um "não sei o quê" que me puxa para os livros de Alexandra Lucas Coelho (ALC) que eu não sei o que é, mas que me leva a entrar neles adentro e só sair quando atinjo o fim. 
Encontro sempre personagens que têm um traço meu, neste claramente é a linguagem desbragada, como muitos me acusam de ter. A narradora consegue ser fulminante com alguns comentários e pensamentos tóxicos, no entanto, o tom que o romance leva, que se esforço por não querer parecer sério, faz-nos cingir essa linguagem à revolta e à fúria que aquela mulher sente e então passa a fazer sentido.

"Lá fui para a Bobadela à hora a que já estaria no centro de Lisboa a nadar, apurando a cada braçada o sofrimento mais adequado a um filha da puta criativo. Roda? Garrote? Esmagamento por pata de elefante? A vingança é muito subestimada até se manifestar (...)"

Neste "O meu amante de domingo" há uma mulher esmagada pela solidão imposta pelo árido Alentejo, sufocando-a num espaço aberto mas exíguo delimitado por um muro. E isso pode, e deve ser, metáfora para tanta coisa seja na vida desta personagem, seja nas vidas que lhe quisermos juntar. Isto para dizer que sinto sempre os livros de ALC como tratados sociológicos cheios de detalhes reais, mas que fogem para um campo surrealista pela riqueza com que a autora divaga e cruza referências. Aqui, a cabeça do autor viaja entre defuntos, vinganças, memórias póstumas e sexo sem compromisso entre viagens a Lisboa. 

"Porque confiei naquele cabrão? (...)
O decapitador dará a mão ao filho depois dos trabalhos do dia, talvez até lhe ensine como é isto de cortar cabeças, talvez lhe cante uma canção. Amor total e ausência de amor são quartos contíguos da mesma casa."

Todo o livros está pejado de referências, Machado de Assis, Nelson Rodrigues, entre outras que não Literatura, ainda assim, vemos que o foco central é a revolta de uma mulher que busca no sexo ocasional uma ligação para compreender que é no sexo que tudo conflui: nada nos aproxima tanto, título de um dos capítulos, resumo bem essa ideia. Sexo, paixão, revolta, vingança, geram e são emoções associadas a tantas outras: solidão, desconexão, fracasso, entrega, medo... Tal como a paixão, o sexo ou a amizade.

"Toda a paixão é um ataque ao sistema imunitário. Se precisamos dela para viver, mais precisamos que ela acalme, ou seja, acabe, para continuarmos vivos."