domingo, 27 de dezembro de 2020

«Margarida Espantada» de Rodrigo Guedes de Carvalho - Opinião


"Joana Ofélia julga que a irmã estará possuída desde sempre por aquilo que Hannah Arendt descreve como sendo o problema circular do amor - maior do que o prazer da conquista do objecto desejado é o pavor de o perder. (...) é enfrentar a ameaça constante. (...) o seu medo do que acontece a seguir, o horror expectante do que acontece a seguir. Um medo que não vêem que é, desde sempre e para sempre, o futuro a roubar-lhes o presente."

Rodrigo Guedes de Carvalho compõe um romance precisamente sobre o pavor. A dimensão do pavor até aquele mais insuportável; o da perda que se concretiza, uma perda maior que qualquer passado ou presente, a perda que põe fim a qualquer futuro: a morte.

"Cortas as correntes e libertas-te, cortas as raízes e morres."
Nas raízes que se perdem, uma atrás da outra e uma outra seguinte, agigantam a dor e o silêncio que tudo quebram e diminuem quem sofre e não vê já nada que lhe amenize a dor. 
Todos os personagens deste «Margarida Espantada» sofrem as suas dores numa solidão escolhida depois de se habituarem à solidão que lhes foi imposta. Pois apesar de a família Duval ser grande, o espaço que os envolve é maior ainda e tensão entre eles aumenta-o mais. A família Duval tem uma frieza que lhes é inerente e rosna baixinho entre eles, num conflito constante, mas com actos de violência à porta fechada. No entanto, "a desconfortável beleza de certas dores" esconde uma resiliência e até um entendimento entre os irmãos Duval que poderão ora espantar, ora confundir o leitor e isso será o melhor (ou mais esperançoso) desta narrativa, tudo o resto, é dor, aspereza e um nevoeiro espesso que entrecorta os acontecimentos, impactando-os.

"O cenário que mais aterrorizava Manuel Afonso, a histórica dimensão da frieza do pai, um mal disfarçado desprezo (...) Manuel Afonso sente dele um inaudível tenso rosnar. Um desdém. 
(...) percebe, como nunca, que assiste a uma batalha antiga, porque o pai e a mãe, suados, ofegantes, olhos inchados num desprezo, parecem organizados numa coreografia.
(...) Entendeu de uma só vez. Viu-se como as primeiras testemunhas dos testes nucleares que, apesar de avisadas e dos óculos de protecção, arregalam muito os olhos quando a bomba explode."

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Opiniões a livros de Rodrigo Guedes de Carvalho:

«O Pianista de hotel»

 


 

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

«As três vidas» de João Tordo - Opinião



Sou fã dos enredos emaranhados construídos por João Tordo. A prodigiosa imaginação do autor cativa-me constantemente. A sua escrita embrenha-nos num sem fim de eventos que nos embalam, viciando-nos nas personagens, por norma todas elas indecisas, misteriosas e até sombrias, criando uma névoa que os envolve num ambiente suspeito, como se todas as vidas fossem possuídas por enigmáticos acontecimentos que anulam a banalidade dos dias rotineiros e idênticos entre pares. Tordo explora os enredos, enche-os de referências, mistura-os com factos reais e atravessa frisos cronológicos inteiros, não para baralhar o leitor, mas para o agarrar até à última página.

E neste «As três vidas» não é excepção.
"(...) a possibilidade do fracasso era a receita do sucesso. Quanto mais vezes o andarilho na corda bamba ameaçasse a queda, desequilibrando-se, (...) mais empatia o espectador sentia por ele. A perfeição não era perfeita, por assim dizer; a perfeição era andar no limite do imperfeito, e essa, sim, era a autêntica arte."

O isolamento e o mistério em torno da Quinta do Tempo, juntamente com o seu mentor Millhouse Pascal e a sua actividade ultra-secreta são o conjunto perfeito para pôr a vida do narrador na corda bamba, fazendo-o aspirar não pela perfeição, mas pela existência simples e pacata de outrora. No entanto, a literatura e o amor, puxam o protagonista para uma espiral de contradições que lhe atravessam a vida por várias décadas e é navegando nesse friso do tempo e de lugares insólitos que vamos acompanhando o narrar dessas memórias até ao tempo presente.

"Mais tarde, pensei se haveria, na verdade, alguma espécie de estranho engenho dentro da cabeça de um homem que o impedisse, a partir de certa altura em que já nada espera, quando aprendeu a aceitar a derrota, de conseguir reconhecer aquilo sem que lhe parecera, em tempos, que não podia viver. Ansiamos por esse momento de felicidade; ele surge (...) e, de repente, não acreditamos nele, por estarmos tão acostumados à sua irrevogável ausência."

Se a felicidade, essa busca incessante for em si mesma uma vida, podemos considerar que o perdão e o aceitar do passado são outra, mas o que podemos esperar de uma terceira vida? Uma vida já plena de aceitação e suas rotinas sem as quais tememos definhar? 

Habitam sempre os romances de João Tordo inúmeras questões taciturnas e considerações melancólicas que põe os personagens à deriva e por vezes também o leitor.

"É impossível, a partir de um certo ponto, esconder o passado ou aquilo que fomos. Fica impresso nos nossos traços como uma cicatriz invisível, a denúncia de uma duplicidade insuportável para os outros e para nós próprios."

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Outros lidos de João Tordo lidos e comentados por mim aqui no blogue:

"Biografia Involuntária dos Amantes" 



quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

«A floresta do mal" de M. J. Arlidge - Opinião

 


"- Como é que se está a sair?
Apesar de, regra geral, ela não apressar um colega de profissão, Graham Ross estava a revelar-se invulgarmente lento. Ela gostava de desenvolver um trabalho meticuloso, recordando a toda a gente que o Diabo estava sempre nos detalhes, mas, na opinião dela, ele vagueava desnecessariamente ..."

Cruzei-me assim meio ao acaso com este livro e. lembrei-me de não lhe ter dedicado um texto aqui no blogue. E eu sei porquê e este excerto não foi escolhido ao acaso, já que este oitavo volume da saga de Helen Grace desiludiu-me. Não por estar mal escrito, antes pelo contrário, ou mal engendrado como os thrillers a que M. J. Arlidge já nos habitou. Nada disso. Eu é que não gostei das infindáveis suspeitas, dos muitos temas (que estão na moda) sem que se foque numa verdadeira motivação para mais esta ronda de assassinatos em série. A meu ver, Arlidge dispersou bastante, vagueou desnecessariamente... 
E talvez canse o leitor com o levantar de tantos véus. 

No entanto, como page turner que é, tão bem alimentados por capítulos curtos e que deixam o leitor em suspenso, assume-se viciante como os anteriores, mas menos macabro, menos focado e com uma Helen a surpreender por se render (e mais não digo) e isso foi outra coisa pela qual eu não esperava e nem queria para a personagem.  Ainda assim, este autor consegue sempre arrepiar-me pela frieza com que consegue transmitir as sensações dos assassinos. 

"Quando se aproximava das suas presas, quando elas se sentiam exaustas, desesperadas, o tempo parecia abrandar. Conseguia interiorizar todos os detalhes - a angústia nos seus olhos, o sangue na sua pele, as unhas sujas, quando tentavam tocar-lhe, suplicantes. Os segundos pareciam estender-se - era como se visse as setas em câmara lenta, a libertarem-se das suas amarras e a precipitarem-se no ar, antes de se cravarem nas suas presas. Eram esses os momentos que saboreava - o choque o rosto deles, enquanto se esvaía deles o fluído vital. 

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Opiniões à saga de M. J. Arlidge:


    UM, DÓ, LI, TÁ...



                        






quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

«A contraluz» de Rachel Cusk - Opinião


 

"Perde-se tanto, observou ele, no naufrágio. O que permanece são fragmentos e, se não nos segurarmos a eles, o mar também o leva."

Neste primeiro volume da trilogia de Faye, Cusk pode em certa parte narrar um naufrágio, ou vários. E o mar talvez seja metáfora para o tempo. Esse instrumento que dizem, na literatura e não só, curar tudo. 
Como mar ou como tempo, funcionam também algumas viagens, distâncias que nos mantêm em apneia face a alguns problemas ou pessoas, sentimentos e memórias. E Faye está em viagem à Grécia. Mas nessas viagens, quando nos cruzamos com outros parece existir uma necessidade de nos explicarmos, relatando contradições, como que se as viagens fossem uma busca por respostas. E não será por acaso que Beckett é referência tanto no início como no final do livro. Há aqui uma busca pelo sentido?

O que buscam estas pessoas, incluindo Faye, a narradora? Revelar-se por antidescrição, assumindo-se o contrário daquilo que os outros descrevem e contam das suas vidas? Vendo nas vidas que se resumem diante dos seus olhos, "polos opostos", conclusões daquilo que a sua não é?

"É como passarmos por uma casa onde vivemos em tempos: o facto de ela ainda existir, tão concreta, faz com que tudo o que aconteceu desde então pareça de alguma forma forma insubstancial (...)
É como se não se conseguisse inteiramente recordar do que o conduzira em primeiro lugar até às palavras (...). 
(...) apercebo-me que não faz sentido nenhum tentar regressar a esse lugar (...) a vida leva-nos numa direcção e nós afastamo-nos noutra, como se estivéssemos a discordar do nosso próprio destino (...)"

Dentro destas reflexões surgem, nas entrelinhas, comentários ou sugestões sobre como escrever determinados episódios, dando-lhes o enfase e a perspectiva necessárias para que ganhem mais personalidade, ou não fosse a narradora, uma escritora a braços com um curso de escrita, motivo pelo qual está na Grécia, onde uma das aulas se assume como o capítulo mais desafiante e viciante para o leitor que quase se sente transportado para dentro daquela aula, querendo participar. 

Nos vários encontros que tem, seja com o vizinho de voo, velhos amigos e outros escritores ou alunos, vão existindo diversas considerações, onde a realidade se mistura com a ficção, analisando vidas que se cruzam com os livros, numa constante interpretação e resignificação dos acontecimentos. E se cruzarmos fragmentos desses discursos dispersos talvez possamos evitar o naufrágio.

"No meu romance, a personagem encontra-se dividida (...). Tudo o que ela deseja para a sua vida é ser integrada, ser uma coisa só, e não uma sucessão infinita de oposições que a baralham (...)
(...) Não há ninguém com quem ela possa falar, ninguém a quem possa contar (...) retoma ele, (...). O livro é claramente sobre ela própria, afirma. (...) Os escritores precisam de se ocultar (...) do mesmo modo que as carraças precisam se ocultar no pelo de um animal: quanto mais profundamente se enfiarem, melhor."

"Ela até conseguiu infetar o romance, embora talvez o romance nos esteja agora a infetar em retaliação, e por isso esperamos das nossas vidas o mesmo que nos habituamos a esperar dos nossos livros: mas essa noção de vida como uma progressão é algo pelo qual já não tenho desejo."

Será isso ou apenas "a capacidade humana para a autoilusão"?


quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

«Homens e Bichos», de Axel Munthe - Opinião

 


Em boa hora me cruzei com este velhinho exemplar, habilmente traduzido com esmero por António Sérgio, trazendo até ao leitor as curtas narrativas de Axel Munthe que revelam um humanismo enorme ao narrar "inconsoláveis resignações" em relatos simples e belos, porém pesados, que denunciam a fome, a luta contra a doença e uma pobreza que esmaga e até humilha. Em quase todos os contos há preocupação, compaixão e cuidado para com os animais, tornando-os elementos centrais como vemos logo em "Para os que gostam de música".

Para além de valorizar e pedir que não se maltratem os pobres, os doentes, os imigrantes, Munthe pede, de forma subtil, atenção às mulheres, mães, irmãs, cuidadoras e gentis, com quem a sociedade é injuriosa e injusta.

"A caridade pública não a ajudaria, porque era estrangeira, e a caridade particular não desceria até ela. deveria escolher entre a miséria e a rua; escolheria a miséria, por amor da criança. Era certíssimo que a Sociedade lhe não daria prémio por tal escolha, por isso a virtude jejua e gela (...)"

Munthe também não esquece a Natureza, tão enaltecida em " O Monte Branco, Rei das Montanhas" que nos conduz num périplo pleno de atmosfera estival até ao peso imponente e belo do perpétuo inverno montanhoso. 

"O trilho que tomávamos era cada vez mais íngreme, e iam rareando progressivamente as filas de guardas de mantos verdes que vinham participando da nossa escalada. (...).
Sentia-se bem que a algidez da morte ia penetrando progressivamente por todas as veias da montanha, e que o coração da mãe Natureza afrouxava também o seu pulsar (...).
E eis-me de rosto com o Rei das Montanhas (...) um esplendor indizível (...). Nenhum eco dos vales se elevava até ali, a perturbar o seu altivo repouso."

Repouso pede também o autor para os animais. De "Ménagerie" ao "Um grito no ermo", denuncia a forma como são tratados, revelando tristeza pelas agruras e sofrimento de uma vida enjaulada ou votada ao abandono. A sua escrita expõe e denuncia, clamando por respeito pelos animais como prova de um desenvolvimento maior que nos separa do lado primitivo e selvagem. 

"Têm os focinhos lívidos de frio, quando dão saltos para aquecerem um pouco, riem os gaiatos trocistamente e param os transeuntes, para os desfrutar - para chacotearem desses pobres, inconscientes palhaços, que servem ali para atrair o público ao espectáculo da tortura dos seus irmãos na miséria."

E no entanto, também confessa, a crueldade da meninice "(...) reconheço nódoas de sangue nos dedos delgados da criança de outrora, que vieram a enferrujar-se em nódoas de pejo nas recordações de infância do homem de hoje. Humilha-me a ideia  de que matei (...)"

Em "Os cães de Capri", revela um lado mais político e crítico, mas não esquece de homenagear a doce transição entre estações do ano e as suas tradições e afazeres tão necessários.
A medicina e a sua condição de médico, bem como a religião ou a Morte são também temas nos seus relatos, numa suma de preocupações que revelam a sua humildade e sensibilidade. 

"Quando assim nos estendemos sobre o chão relvoso, a observar esse mundo, acabamos sempre por nos sentir pequenos. 
Por fim, parece-me que não passo de uma formiguinha débil, afanosa com o peso de uma carga incómoda, numa mata sem trilhos." 


quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

«Em tudo havia beleza» de Manuel Vilas - Opinião

 


"Oxalá fosse possível medir a dor humana com números e não com palavras incertas. (...) Todo o homem acaba, mais dia, menos dia, por enfrentar a insignificância da sua passagem pelo mundo. Há seres humanos capazes de o suportar, eu jamais o suportarei."

Vilas afirma desde a primeira página essa dificuldade junto com a dor que tem a braços, no meio do desvanecimento geral de todas as coisas. Para organizar essa dor e ruína emocional, faz este balanço entre a importância de recordar passados e homenagear os nossos mais queridos. Cobre-se de um pranto que verte no romance, o choro que outrora afogou na bebida, são páginas e páginas dessa busca incessante pela alegria e satisfação de olhar para o futuro sem estar aterrorizado pelas pazes pendentes com o passado.

"Pois o passado tem para quase todos os seres humanos a concretude de uma personagem de romance."

E nessa concretude de sacralizar e entender a dor, Vilas acrescenta: "A dor não é de todo um entrave à alegria, tal como eu entendo a dor, pois para mim está vinculada à intensificação da consciência. O sofrimento é uma consciência expandida."

Por isso mesmo, «Em tudo havia beleza» é um romance expansivo e até caótico, onde Vilas pretende entender o que foi acontecendo na sua família e simultaneamente em Espanha, colmatando a comunicação que faltou enquanto os pais eram vivos, quando foi casado ou tinha os filhos mais debaixo da sua asa. 

O registo é confessional, chega a parecer vulgar e até indiscreto, imiscuindo-se no leitor, mas talvez seja a forma de expiar a culpa, de matar demónios, de deixar um testamento dos seus pensamento mais privados, sufocados no homem da gravata falsa, amarrada a um pescoço falso, uma gravata humilhada de nó triste, condenada a um amarelo esbatido, cansado, preguiçoso.

"Um divórcio desperta a culpabilidade, porque a culpa é um exercício de relevo, é relevo sobre terra lisa. A vida de um ser humano é a construção de relevos que a morte e o tempo acabarão por alisar."

É nessa construção de relevos que se insere este romance. É uma luta contra o desamparo e o desmoronamento da ternura, negando terreno à desmemória e apelando à melancolia. Relembrar pausadamente, mesmo que com o pensamento em rodopio, respeitando a nossa individualidade que começa com o saber e conhecer a nossa história que começou na vontade dos nossos pais em nos dar vida. 

"Ter alguém à nossa espera algures é o único sentido da vida, e o único êxito."

No entanto, esse único sentido não tem sentido único e por vezes no relato caótico, entre saltos cronológicos e alguma revolta, existem contradições onde o narrador se desdiz das anteriores afirmações muito determinadas e até moralistas que acabam por se esbater na culpa e no nervosismo de um enorme vazio de quem questiona e contempla tudo. 

"O meu coração parece uma árvore negra cheia de pássaros amarelos que guincham e perfuram a minha carne como num martírio. Entendo o martírio: o martírio é arrancarmos a carne para estarmos mais nus; o martírio é um desejo de nudez catastrófica."



sábado, 28 de novembro de 2020

“Uma Pequena Sorte” de Claudia Piñeiro :: Opinião

 


"A noite passada sonhei que regressava a Temperley." 
Podia começar assim esta narrativa que está povoada de regressos, mas não. Claudia Piñeiro escolhe a Nobel, Alice Munro, para introduzir o leitor à dor aguda, mais tarde crónica, que não matará, mas povoará para sempre as vidas bafejadas por pequenas sortes.

"(...)E aprenderás alguns truques para a aliviar ou suprimir, tentando não destruir o que só à custa de todo este sofrimento obteve."                                     
Alice Munro, «As crianças ficam»
                                                                                                                            
María Elena Pujol, hoje Mary Lohan, vive duas vidas separadas por uma tragédia que desde cedo se anuncia. A sua vida silenciosa oscila entre compassos do melancólico Oblivion e uma energia prestes a explodir como em Libertango de Piazzolla. 

"Eu estive muito tempo calada, sinto-me confortável no silêncio (...). A ausência de palavras enunciadas é um habitat que conheço desde sempre, o meu estado natural (...) E sinto-me desconfortável a falar do clima sem motivo (...). Talvez seja essa a verdadeira origem da minha disfonia crónica: a obrigação social de ir contra o meu estado natural de silêncio."

O silêncio tornou-se o seu lugar favorito, uma condição apropriada para a dor despojada e eterna que sente. Uma dor habitava por um palco vazio, escuro e infinito, num tempo expandido sem mais palavras do que aquelas que se repetem na sua memória e na caligrafia que reescreve uma história mas não lhe altera o fim. 

"No entanto, estive sempre atenta, alerta, receosa de que um dia pudesse converter-me noutra coisa e fazer-lhe mal. Uma mulher obscura, como a minha mãe (...) mas também não se concretizou. (...) Mas a vida pôs aquela circunstância no meu caminho (...) não alcancei a nota necessária. (...). A maternidade está cheia de pequenos fracassos."

A vida está cheia de pequenos fracassos, como também de pequenas sortes, coisas tão banais como o lugar que nos calha no avião ou a pessoa que se sente ao nosso lado. Ou conhecermos alguém numa festa, onde nem sequer era suposto estarmos. Pequenos detalhes que alteram o rumo dos nossos dias. 

"O tempo ensina-nos que não existe só uma definição para o amor. (...) muitas vezes uma pessoa não se apaixona pelo outro, e sim por si mesmo apaixonado. Ou pelo que implica estar apaixonado (...) Uma pessoa quer estar apaixonada, e então está. Estávamos. "

“Uma Pequena Sorte” de Claudia Piñeiro funciona muito bem como thriller, tendo como base um drama familiar que se cruza com muitas referências que exploram dor, solidão, desespero, infortúnio e até suicídio, sabendo que do outro lado da moeda estão, família, maternidade, paixão, tango, livros e sorte. 

Agradou-me também ideias transversais que se cruzam com outras leituras recentes, quando Piñeiro refere a ideia de nos apaixonarmos pela ideia de estarmos apaixonados e não pela pessoa, recordando-me «Apneia» que explora a ideia de não amarmos a pessoa, mas a imagem com que ficamos por termos tal relação; ou ainda a ligação com «Olive Kitteridge» quando se aborda o suicídio como uma morte dedicada. 


sexta-feira, 27 de novembro de 2020

“Olive Kitteridge” de Elizabeth Strout :: Opinião

 «Olive Kitteridge» valeu um Pulitzer a Elizabeth Strout e valeu recentemente à HBO uma série fabulosa. 

                                    

A narrativa, dispersa por mais de uma dezena de contos, cruza vários personagens, todos eles residentes numa vila costeira, meio idílica, onde todos se cruzam mais ou menos de perto com Olive ao longo de mais de 25 anos e é dessa forma que vai surgindo, peça a peça, a imagem da temível professora do liceu, da educação que deu ao seu filho e da sua relação com Henry, o marido gentil e dedicado, que é também o farmacêutico da vila.

"Lembrou-se novamente de John Berryman. Salva-nos de espingardas e suicídios paternos [...] Misericórdia! [...] não primas o gatilho senão, a minha vida toda, sofrerei pela tua ira. (...) não, Kevin não suportava a ideia de uma criança descobrir o que ele próprio descobrira: que a sua mãe sentira uma necessidade tão grande e tão urgente de devorar a vida, que deixara as portas dos armários todos da cozinha salpicados com restos da sua corporeidade."

A escrita é cativante, mas dolorosa, retratando solidão e desamparo, mas também a incompreensão da vida quando olhada em retrospectiva e quando a única saída parece estar no cano de uma espingarda que porá fim à angústia e nos devolverá para junto dos que mais amamos. Podemos até dizer que o suicídio é um fio condutor entre histórias, um motor bizarro que mantem alguns deles em andamento.

O cruzamento de desespero sufocado e silencioso com da crueza como é descrita Olive, contracena brutalmente com a interpretação feita por Frances McDormand. E talvez seja isso que faz toda a diferença, agigantando a Olive que imaginámos conto atrás de conto.

Ler este livro e logo de seguida assistir aos quatro episódios que compõe a série é como que dar continuidade ao enredo ou uma maior consistência a algumas cenas que ficam a pairar na cabeça do leitor, quando também nós fomos alvo dessa esponja húmida de tinta.

"Depois disso, foi como uma pintura a esponja, como se alguém tivesse encostado uma esponja húmida de tinta a escorrer no interior da sua mente e só mesmo o que a esponja pontou, umas quantas manchas aqui e acolá, tivesse retido aquilo de que ela se lembra do resto dessa noite."

Os sentimentos e as emoções, tal como a memória, estão manchados e fragmentados, perdidos no meio de uma depressão longa, mas são o que mais surpreendem em Olive, ela não é simpática ou amável, mas é empática e observadora, conseguindo por vezes ajudar em situações limite, ela ama e é frágil, mesmo quando todos a julgam forte e insensível e parte dessa transformação é redentora e convocam no leitor um profundo apreço pela personagem. 

"(...) O céu estava cinzento e pesado. Olive sentiu uma perturbação diferente das outras vezes. Provinha de Christopher, sim. Mas ela parecia presa entre as pinças de um remorso intratável. Um embaraço profundo e pessoal inundou-a, (...) Foi a vergonha que lhe fustigou a alma, como os limpa-pára-brisas diante de si: dois grandes dedos negros e compridos, inexoráveis e rítmicos no seu castigo."

O que fustiga o leitor, tanto no livro como na série é a angústia da depressão e uma franqueza fria, desapegada, que parecem estar inevitavelmente de mãos dadas, e talvez por isso, mais para o final da sua vida Olive pondere a culpa e a vergonha. Vai até mais longe e pensa em castigo e isso abre um fosso enorme sobre a compreensão e aceitação da doença e da coragem que é precisa para viver. 


quinta-feira, 19 de novembro de 2020

«APNEIA» de Tânia Ganho ::Opinião



"«Trazei-me uma espada», ordenou Salomão, na Bíblia, para resolver a contenda entre duas mães que reclamavam o direito a uma criança. «Cortai o menino vivo em dois», disse o rei, «e dai a cada uma a sua metade.» Adriana perguntava-se se, algum dia, algum deles voltaria a ser inteiro." 


«Apneia» é um mergulho profundo no mar bravo da batalha desumana e desequilibrada em que se pode tornar um divórcio e consequente processo de custódia, tornando as crianças em alvos e meros números que constam em processos judiciais. Vidas perdidas nas burocracias complexas de um sistema desajustado e minado por uma surdez prepotente.


"Os homens-inquisidores lembravam-lhe Alessandro: esmiuçavam, chafurdavam e não se contentavam com silêncios, respostas sucintas. Não compreendiam que ela preferia manter as caixas fechadas, as portas trancadas, a vida devidamente etiquetada e arrumada.
Isolou-se, tornou-se um eremita,/ abrindo a porta apenas/ para uns quantos animais especiais"
Anne Sexton, «The Witch's Life»

Adriana socorre-se muitas vezes das palavras de Anne Sexton para com essa poesia confessional denunciar o quanto se sente dilacerada e vive pela metade uma vida em sobressalto. É mulher e mãe no limiar das suas forças, lutando para pôr fim a uma relação abusiva e violenta com Alessandro. No entanto, o divórcio ardiloso, por parte do marido pode ditar uma vida órfã do filho Edoardo, tornando-a numa pessoa ainda mais despedaçada.


"Tinha noção de que chegava ao psicólogo com o coração cosido no avesso do pulso e não havia ética nem lei que o fizesse voltar para dentro do peito."


Adriana dá corpo a uma montanha de sentimentos e ao anunciar de uma tragédia que é todo o processo aqui descrito, alertando para a realidade tenebrosa que vivem as vítimas de violência doméstica e os seus filhos. Apanhados num jogo emocional enorme, onde a manipulação é proporcional ao grau de violência e a uma solidão em crescendo. E o divórcio litigioso apenas surge como mais uma colecção de distúrbios, desconfianças e descrença num sistema, também aqui denunciado, seja com a cena escabrosa do advogado como o lado perverso de certas leis.


"(...) Eram dois bichos solitários, mas as suas solidões tinham formado uma família. E assim como Edoardo continuava a traçar o pai, a mãe e o filho, quando o enésimo psicólogo lhe pedia para desenhar uma família (....)


Antes da consulta, a psicóloga convocou Adriana e interrogou-a. Refez a sua vida?», perguntou, e ela fixou-a, cansada, lembrando-se de uma frase de Meg Wolitzer: «As relações eram um luxo concebido para pessoas cujo as vidas não estavam em crise.» Não, nem lhe parecia provável, mas o uso do verbo «refazer» interpelou-a.”


Refazer tornou-se uma palavra tão importante como superar. Ambas faziam parte da cura e da busca incessante pela normalidade, onde o trauma não fizesse ruído e o medo e a dor fossem devidamente desarmadilhados.


“Quanto mais lia a poesia de Anne Sexton e de Sylvia Plath, maior era o seu desejo de explorar também a escrita, a par com a pintura (…). Queria abordar o seu sentimento de impotência (…)
Uma das qualidades da pintura de Paulo Rego que a atraía era a expressão dos pesadelos íntimos. Em resposta à pergunta «porque pinta?», Paula Rego respondera: «Para dar rosto ao medo.»


Dar rosto ao medo e voz às vítimas foi o que conseguiu a autora, Tânia Ganho, com um relato que chega a ser chocante, trazendo para o leitor o peso da revolta e da humilhação. Expõe assim, o sofrimento atroz que se esconde em infinitas páginas de processos que se arrastam ao longo de anos, aumentando o sufoco e a impotência em que vivem as vítimas.

Tânia Ganho teceu, meticulosamente, um romance imponente sobre a violência conjugal e parental, sem esquecer de o dosear com um breve amor simples e descomplicado que cabia numa cama estreita, algures numa ilha isolada e pelas pinceladas de arte e literatura que distraem e nutrem o leitor. E até com isso passa uma mensagem, a de que a violência e a alienação parental são transversais a todas as camadas sociais.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

«Bartleby, o Escrivão» de Herman Melville :: Opinião

 


Não sei se Bartleby é a personificação do ócio, da letargia ou do respeito pelos seus limites e vagareza peculiar ou se o relato de Melville é um apelo à passividade e à desaceleração, já nos idos de 1853, mas o que é que certo é que este pequeno tratado da inutilidade essencial, como disse Borges, releva uma ironia enorme cada vez que o personagem diz: "prefiro não fazer."

Apesar da aspereza com que certos colegas o julgam, Nippers, Turkey e Ginger Nut são personagens aos quais já nos habituámos e fez-me pensar na velha expressão:"cócó, ranheta e facada", levando um pouco ao extremo o quanto a noção de grupo pode influenciar as equipas e a tomada de decisão. No entanto, um personagem maior, é o próprio narrador e patrão, pois há nele, como que uma admiração e curiosidade, ao analisar e descrever o quão Bartleby é uma surpresa e até digno de contemplação. Ainda assim, o peso do trabalho, a repetição e o aborrecimento não são por ele analisadas, mas sim a tentativa de adivinhar e escrutinar o carácter e o futuro de Bartleby.

Essa curiosidade pauta todo o conto, bem como a ideia de deixar o destino entregue nas mãos do acaso, negando constantemente continuar a pertencer a uma engrenagem que despersonifica. Tudo ganha uma nova perspetiva mais para perto do final e um arrebatamento maior ainda num quase posfácio, dando a sugestão de uma falha na comunicação, fruto da má gestão, de linhas trocadas ou simplesmente por atraso na volta do correio. E talvez surja no leitor uma revolta, uma epifania, um desejo de também ele dizer "prefiro não fazer", mas mais cedo, muito mais cedo ainda. 

«Bartleby, o Escrivão» será sem dúvida um texto intemporal, pejado de interpretações e resignificados, expandindo consoante seja a busca de quem o lê. 

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«O atribulado Caminho para a Felicidade» de Isabel Losada - Opinião

 


O mote é simples e concreto: ser absurdamente feliz. No entanto, é absurdo! Não o querer ser feliz, mas ser ab-sur-da-men-te feliz, o que parece logo uma felicidade sem limites e tal caminho só pode ser atribulado e é por isso que a autora, Isabel Losada, regressa com este relato, dando assim continuação ao peculiar: «Quero ser absurdamente feliz" 

"- A verdade é o exacto oposto daquilo em que acreditamos. Pensem nisso."

Pode ser uma fazer muito traiçoeira quando se anda em busca de um guru, uma cura, uma luz ou som pacificador ou um toque mágico com poderes curativos, tudo o que nos traga paz real, felicidade. Ou seja, se dizemos a nós mesmos que estamos infelizes, será a verdade o oposto disso mesmo?

Ou andamos a fazer as questões erradas?

Aprendendo a formular melhor as suas dúvidas ou a espraiar e redirecionar as vibrações e energias, Losada recorrer a um sem fim de práticas e de mestres: meditação, palestras motivacionais, Feng Shui e Bazi, o PNL de Antony Robbins ou a Risoterapia de Patch Adams, até ao culminar da alucinação com ayahuasca no Peru, a autora leva-nos a uma viagem atribulada, mas holística e imensa e que nos desperta para um leque variado de formas de terapia. Isto sem esquecer, os livros e os filmes, de onde destaco:«Norwegian Wood» de Murakami ou o multipremiado «Juno», produzido por John Malkovich.

"Sinto-me muitíssimo em paz depois deste tempo com Mooji. Estou revigorada (...). Voltei a pendurar no quarto a imagem da onde gigante (...). Quando olho para ela, lembro-me de Mooji a dizer que, quando tiramos a mente do caminho, conseguimos viver com a consciência de que não somos apenas uma onda, mas todo o oceano."

Mesmo assim, sentir-se um oceano não foi suficiente para Losada, foi preciso tomar um atalho para observar melhor a sua consciência, serenar a sua mente hiperactiva e claro, satisfazer a sua curiosidade pelos rituais xamânicos de cura e partir à aventura imersiva no elixir peruano.

Mas o que eu mesmo gostei neste livro, foi de andar de volta de algumas referências e regressar a Murakami quando a certa parte: "- O sofrimento é uma atitude, reflecte a forma como uma determinadas pessoa vive a sua experiência (...) A dor não precisa ser sofrimento. (...) para descrever uma corrida de resistência."

E esse regresso a Murakami, fez-me pensar numa frase atribuída a Carlos Drummond de Andrade: "Envelhecer é inevitável, ficar velho é opcional." e entre pesquisas e frases lá se volta novamente para a literatura:

"Já sofri por muitas coisas na minha vida, 
mas a maioria delas nunca existiu."
                                                                                     Mark Twain


quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Opinião "Uncommon Type / Papéis Diferentes" - Tom Hanks

Vamos lá falar do primeiro livro do espectacular e adorável Tom Hanks. Até à data do lançamento deste livro, eu ignorava que ele escrevia. Tinha ideia que ele já tinha sido responsável por guiões de filmes em que entrou ou produziu mas nem sabia quais. O que também não sabia é que ele coleciona máquinas de escrever e que em 2014 lançou uma app (Hanx Writer) que simula a experiência de escrever nas ditas. Se eu dei por mim a encolher os ombros perante a ideia, o mesmo não aconteceu a imensa gente que até tornou a app num pequeno sucesso pela altura do seu lançamento. 
E agora vocês perguntam “mas o que é que isto tem a ver?” e eu respondo com a sinopse.

SINOPSE
Um romance febril e divertido entre dois melhores amigos. Um veterano da II Guerra Mundial cura as suas cicatrizes físicas e emocionais. Um ator de segunda categoria que é atirado para o estrelato e de repente encontra-se no meio de uma estreia tempestuosa. Um colunista do jornal de uma pequena cidade com perspetivas do mundo moderno bastante antiquadas. Uma mulher a adaptar-se à sua vida no novo bairro depois do divórcio. Quatro amigos que vão à Lua e voltam numa nave construída no quintal das traseiras. Um surfista adolescente que tropeça na vida secreta do próprio pai.
Estas são apenas algumas personagens e enredos que Tom Hanks cria no seu primeiro livro de ficção, uma recolha de histórias que explora com grande ternura, humor e perspicácia a condição humana e algumas das suas particularidades. Todas têm uma coisa em comum: uma máquina de escrever desempenha um papel em cada história, umas vezes menor, outras vezes fulcral. Para muitos, as máquinas de escrever representam uma perícia e beleza cada vez mais difíceis de encontrar. Hanks alcança-as facilmente.

Como eu nunca leio sinopses dos livros que quero ler apenas por causa do autor, só percebi quando abri o livro que todos os contos deste “Uncommon Type” (Pápeis Diferentes em Portugal) têm como personagem uma máquina de escrever, embora num registo “never the bridge, always the bridesmaid”, esta peça não ocupa um foco central, é em muitos casos um detalhe tão ínfimo que mal damos por ele. Confesso que até cheguei ao fim de um dos contos e não me lembrava de ter visto referência mas vá, eu sou distraída :) 
Como a sinopse menciona e muito bem, os contos são do mais diverso possível. Há uns que nos prendem e nos deixam tristes por já terem terminado, outros que nos fazem sorrir por qualquer semelhança a algo que conhecemos mas depois há aqueles dos quais não guardamos grande coisa, excepto mais um modelo de uma máquina de escrever antiga, algumas delas bem bonitas. No entanto, o que levamos do livro é que o Mr. Hanks consegue transpor para o papel um pouco daquele calor que emana e que me faz gostar dele. Desafio-vos a não ouvir a voz dele na vossa cabeça quando começam a ler.
Em suma, posso dizer que gostei da experiência mas só fiquei fã de uma mão cheia de contos.
Se os seus dotes de escrita são brilhantes? 
Não sou juiz para ditar a sentença do “fica-te pelos filmes” mas posso afirmar que “Uncommon type” conseguiu despertar em mim o saudosismo por um meio antigo e no qual ainda tive oportunidade de bater umas teclas em miúda, sem compreender sequer a engenharia e mestria que aqueles monstros das letras possuíam.
Talvez contos não sejam bem a minha praia, eu que gosto abrir um livro e levar tudo a eito. Próxima vez que um livro de contos me chegue às mãos, vou optar por torná-lo um companheiro de mesa de cabeceira, para ler num regime “um conto por dia não sabe o bem que lhe fazia”.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Opinião "Clock Dance" de Anne Tyler

Willa Drake sempre dançou ao ritmo da música dos outros. Desde pequena aceitou o embalo das ondas criadas pelo conflito familiar e o desaparecimento da Mãe lançou o que seriam as fundações de uma personalidade que se sobrecarga com as responsabilidades e o bem estar alheio, sem olhar ao seu. Esta característica até podia ser encontrada numa mulher e/ou mãe galinha/guerreira que luta e leva tudo à frente mas no caso de Willa é o que a torna complacente e a leva a seguir uma vida para o qual foi levada pelas vontades e decisões dos outros. 
Uma das coisas que gosto de fazer quando vou de férias é escolher livros da estante que depois irei deixar em locais como o campismo onde vamos todos os anos e que já podia encher meia estante com os títulos que temos deixado por lá. No entanto, o objectivo não é que fiquem a ganhar pó na estante e que uma vez deixados no local das doações, encontrem sempre um novo dono e partam assim para novas paragens.
Algures num dos meus passeios deste ano, dei-me de caras com um campismo que tinha umas centenas de livros na estante dos doados e lá do meio salvei um Juan José Millas em espanhol e este “Clock Dance” de Anne Tyler em inglês. O resto estava em línguas que não domino e em idiomas que nem sequer reconheci.

O nome da autora pareceu-me familiar mas sabia que nunca tinha lido nada seu embora a Wook, minha bíblia base de dados, diga que até tenho livros da autora na wishlist. São tantas as opções que uma pessoa até se perde.
A última mudança na sua vida ocorre quando Willa se torna, fora da zona de conforto e a vários estados de distância da sua residência, a pessoa responsável pelo bem estar da ex namorada do filho e da uma miúda que nem sequer é sua neta. A aceitação de um pedido sem lógica esconde a faísca que pode incendiar tudo e é assim, entre mal entendidos, vontades, desafios e alegrias até então desconhecidas, que Willa abre um novo capítulo na sua vida, ou pelo menos, um que algures lá pelo meio começa a ser escrito pelo seu próprio pulso.

Se “Clock Dance” é uma história de “mudar de vida” ou grandes epifanias isso não posso dizer sem dar spoilers mas acima de tudo é um livro que nos relembra que há beleza nas coisas mundanas do dia a dia e que, parafraseado alguém que não sei quem, o que interessa é o caminho, não o destino. E se esse caminho for fruto das nossas escolhas, boas ou más, a única coisa que interessa é que esteja povoado por quem mais gostamos e que nos vá fazendo feliz até chegarmos ao nosso destino.

Pergunta...
quem é que já leu algum livro desta autora?
Tenho o "Amarga como vinagre" na wishlist faz muito tempo. Alguém leu?

sábado, 12 de setembro de 2020

Opinião "Os rapazes de Nickel" de Colson Whitehead


Com a chegada do correio, o pouco que ainda vamos recebendo por estas paragens, segue-se sempre a divisão dos pães literários entre as duas metades que compõem esta casa. “Os rapazes de Nickel” é, sem sombra de dúvida, uma leitura que figura do lado da metade negra mas por vezes, há livros que chamam por nós e no qual pegamos sem saber o que vamos encontrar ou o quanto o seu conteúdo se encaixa no que habitualmente gostamos de ler.


Baseado no caso real de um reformatório mascarado de escola, palco de segregação e incontáveis horrores, “Os rapazes de Nickel” começa com a descoberta, anos após o fecho e venda das terras, de corpos mutilados e campas anónimas nas imediações do local. Durante décadas de funcionamento, as queixas de violência sempre pairaram sobre a instituição como uma sombra mas nunca se fez justiça, nunca se lutou por quem lá pereceu. Quantos miúdos morreram assim? E quem não morreu, como levou a sua vida dai para a frente?


“Era aquilo que a escola tinha feito aos rapazes. Não acabava após a saída dos alunos. Amassava-os de todas as formas, deixava-os bem danificados e incapazes de te uma vida decente" 


E é assim que ficamos a conhecer Elwood Curtis, um miúdo inteligente com um futuro que tinha pernas para andar mas cujo tom de pele e a década em que nasceu, o colocaram num mal entendido que ainda hoje muda a vida de muita gente. A passagem pela Nickel, mais que um solavanco na estrada, altera por completo o terreno palmilhado daí em diante por Elwood e por outros que como ele viveram os horrores perpetrados por quem seriam os seus cuidadores. Há imagens que não se esquecem, sons que retesam todo o corpo mesmo anos depois e há cicatrizes, físicas e emocionais, que nunca saram. Como é possível sarar uma ferida que continua a sangrar? 


É impossível não sentir um arrepio na espinha perante o que o nosso imaginário vai criando com as descrições de Whitehead. Ele coloca-nos lá, mesmo sem sequer fazermos ideia do que poderá ser um inferno assim.


Onde me falta o brilhantismo na minha opinião, coloco o que roubo à divulgação do livro para vos sugerir a leitura desta novidade.


“Um romance de brutal impacto emocional. Uma obra literária que exibe a pujança de um escritor em plena forma, que explora a ferida aberta da segregação racial e levanta uma poderosa voz contra a injustiça” 

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Opinião "Extremo Ocidental"

Há livros que nos caem no colo sem contarmos e "Extremo Ocidental" foi um deles. 

Pela altura do seu lançamento (2016), chegou-nos uma cópia por cortesia da editora Elsinore mas por questões de preferências, o exemplar acabou por ir parar à outra metade desta casa literária. Dissecado, comentado e levado de viagem, esse exemplar ainda lá está na estante e o que eu acabei por ter como companhia foi encontrado num cafezinho pitoresco que em tempos foi uma antiga estação de comboio na linha do Vouga e que agora é a casa de partida para uma volta de bicicleta na ecopista. Sem querer, este livro partiu comigo e juntos rumámos ao Norte de Portugal e ao local do Capítulo 1 -  A Ilha de Insua, Caminha e a fria, ventosa e desafiante Praia do Moledo.

Calma, não vai sair daqui uma roadtrip com "Extremo Ocidental" como guia. O nosso encontro foi apenas um acaso do destino e calhou as nossas coordenadas se alinharem.

Por escrito percorri estes mais de mil e tal quilómetros de costa a visitar sítios onde nunca fui, a reencontrar os areais que conheci toda a minha vida e a compreender que somos um país cheio de locais, histórias e pessoas interessantes para conhecer.

De norte a sul mergulhamos nas praias e nas histórias, quase que nos sentimos como se ali estivéssemos


e alguém sentado ao nosso lado, a sentir o mesmo sol e o mesmo vento, nos contasse tudo sobre si e o local em que nos encontramos. É assim, a saltitar costa abaixo e indo até Marrocos, que ficamos a saber que nunca houve um pessegueiro lá na ilha e que existem parques de campismo onde não se acampa.

Este "Extremo Ocidental" permite-nos conhecer um bocadinho mais da alma do nosso país, da sua geografia e a sua gente. Se antes falei de roadtrip em tom de brincadeira, aqui fica a sugestão:

Percorrer a costa de Norte a Sul de carro, mota, carrinha ou caravana (vá vou deixar o a pé e de bicicleta de lado sem ser contra) é uma óptima sugestão para as vossas próximas férias. Com este e outros livros como companhia, quem sabe não ficam a conhecer um lado de Portugal que desconhecem.

E por falar em livros, lá para o meio da Costa, algures antes de chegar a Vieira de Leiria somos presenteados com um episódio hilariante e que já me veio à memória algumas vezes ao longo deste verão, especialmente se vejo alguém sentadinho na sua cadeira a ler como se estivesse na santidade do seu lar. Todo o leitor sabe o pesadelo (mas também o prazer) que pode ser "ler na praia", excepto quando o mar nos prega uma partida ou calhamos numa praia cheia de gente barulhenta.

Boas viagens e boas leituras.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Opinião "O Segredo de Rose"

As delicadas e surpreendentes irmãs Fowler. 
Se Violet foi uma agradável surpresa, Rose foi o equiparável à flor que lhe dá o nome. Bela, sofisticada mas no final de contas, um clichê. 


Conhecemos Rose no primeiro livro e que é inteiramente dedicado à sua compostíssima irmã mais velha. Se Violet é a cabeça dos negócios, Rose pareceu-me a lufada de ar fresco da família. Como irmã mais nova, foi sempre protegida mas isso não a impediu de marcar o seu lugar na Fleur, a empresa familiar, e desenvolver uma personalidade engraçada e descontraída. No entanto, a imagem externa que obtemos de Rose através dos olhos da irmã revela-se um pouco longe da realidade. Insegura quanto à sua posição na hierarquia familiar, especialmente no que toca à importância que cada pessoa tem na empresa, Rose chega-nos abalada pelos segredos do passado, pronta para meter um ponto final no legado familiar e a precisar de um escape. 
O que melhor que um homem para nos tirar a cabeça das coisas mundanas do dia a dia?
E o mesmo se pode dizer do contrário. 

 "Doem-me literalmente as mãos com vontade de a tocar. Mas não o faço. Não posso. Toca-la faz com que perca células cerebrais, juro por Deus"

Caden conhece Rose em Cannes, durante a apresentação do documentário sobre a família Fowler. No entanto, ele não estava lá pelos seus interesse cinematográficos. A queda astronómica do seu pai uns anos antes fez de Caden o responsável pela família, ou melhor, pela mãe. Em vez de adoptar a acção de qualquer pessoa normal e ir trabalhar, Caden decidiu enveredar por um caminho que permitiria aproveitar-se dos seus conhecimentos da alta esfera social e ganhar dinheiro, ou seja, roubando aos ricos e dando aos pobres, um Robin Hood que na realidade ficava com os ganhos e providenciava o dia a dia da sua mãe e seu.
Mas quando o seu último golpe, um colar caríssimo e que raramente vez a luz do dia, se encontra ao pescoço de uma mulher que é capaz de o desestabilizar apenas com um olhar, Caden vê a sua fonte de rendimento ficar suspensa entre a razão e o desejo de não magoar Rose.

Envoltos num nevoeiro de atracção e pouca razão, Caden e Rose vivem um romance suspenso da realidade na cidade de Londres onde os dois se encontram de passagem, ele a aproveitar a boleia no regresso a casa e ela de visita à irmã que agora se encontra a gerir a sucursal da empresa com o giríssimo Ryder (lembram-se dele?!) 

Quando ambos tomam decisões que podem mudar para sempre a sua vida, haverá possibilidade de se redimirem perante si próprios e um com o outro?


Estou curiosa para ler a sobre a terceira e última irmã, a infame Lily.
Mas ainda não tenho o livro :P

Leitura de Setembro 2018 que ficou perdida nos rascunhos até setembro de 2020

«Uma mulher desnecessária» de Rabih Alameddine :: Opinião

 



"Aaliya, a sublime, a louca."

Aaliya, a mulher desnecessária. Aaliya a mulher não religiosa, mas crente no poder dos livros, na salvação pela palavra, pela Literatura. 
Aaliya a caprichosa, a rebuscada, a livreira, a tradutora, a mulher desemparelhada do seu tempo, da sociedade que a envolve e ainda assim uma mulher tão necessária ao futuro irreconciliável entre realidade e ficção.

"Gosto de homens e mulheres que não encaixam bem na cultura dominante, ou, como Álvaro de Campos lhes chama, estrangeiros aqui como em toda a parte, casuais na vida como na alma. Gosto de outsiders, fantasmas a errar em salas cobertas de teias de aranha no castelo maldito de ter que viver."

"Incomodou-me, a vida toda, eu não ser igual a toda a gente. Durante anos, consegui convencer-me de que era especial, de que ser diferente era uma escolha. (...) Sou única, um indivíduo, não simplesmente idiossincráticas, mas extraordinária. Considerava o meu individualismo uma virtude, que me protegia e estados de espírito colectivos e insanidades, que me ajudava a elevar-me acima das correntes rápidas da família e da sociedade. A ideia reconfortava-me. Só que agora não está a resultar. E não é só de agora. Já lá vai algum tempo que não consigo muralhar o meu coração como deve ser. (...)
Não me saí tão bem como Gustave. Os meus muros não são estanques. Ao longo dos anos, surgiram brechas irregulares. (...)
Pessoa, que conhecia a alienação ainda melhor do que Flaubert, escreveu: «Mais terrível do que qualquer muro, pus grades altíssimas a demarcar o jardim do meu ser, de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e mantenho outros.»
Que dom para as palavras tem este poeta, que domínio das imagens."

Que dom tem também Rabih Alameddine para escrever como se fosse uma mulher, ler-lhe a alma e as ânsias, expondo particularidades e a solidão numa extensão incrível que nos deixa boquiabertas perante tal transparência e intensidade. Domínio tem também de um enredado de citações, referências, livros, quadros, poemas, filmes e tanto mais que torna este livro um manual de consulta obrigatória, para além de brindar o leitor com uma personagem fabulosa que é esta tradutora não oficial, uma mulher que se muralha e resguarda na melodia do árabe, trabalhando assim livros intemporais que são a sua melhor companhia.

"Não há nostalgia tão intensa como a saudade do que nunca existiu."

Este livro está pejado de solidão e de pequenas esperanças que morrem muito cedo, deixando um vazio  assustador que quase parece obrigatório à condição feminina naquele colosso geográfico condicionado pela sociedade patriarcal e o esmagamento pelas tradições religiosas, a Beirute muçulmana para uma mulher com mais de setenta anos, no entanto Aaliya, a resiliente, contraria o obstrucionismo enraizado e persiste no inútil, pensando e citando Pessoa.

"Ora, poderão querer saber porque é que me empenho tanto nas traduções, se depois as encaixoto (...). Pois bem, o meu empenho prende-se com o processo e não com o produto final (...)
Mas não só. No Livro do Desassossego, Pessoa escreve: «A única atitude digna de um homem superior é o persistir tenaz de uma actividade que se reconhece inútil, o hábito de uma disciplina que se sabe estéril, e o uso fixo de normas de pensamento filosófico  metafísico cujo a importância se sente nula.»"

É sem dúvida um desassossego que sentimos a certa parte deste livro ao acompanhar a vida desta mulher, que ao sabor dos seus relatos, nos revela o passado e, tudo num espaço de poucos dias perto do final do ano, quando, por norma, acaba uma tradução e há a euforia de escolher um novo projecto para começar mais um novo ano. Mas o desassossego maior chega com um acontecimento, uma viragem, um encerrar de um capitulo, uma cena muito intensa, palpável, rica em imagens e cheiros, que sendo levada a palco, ali, acontecendo debaixo dos nossos olhos, arrancaria, por certo, lágrimas aos espectadores.

"A minha alma é um brinquedo e roer do destino. A minha sina persegue-me como um batedor experiente, como um caçador malévolo, morde-me e não me larga. Encontro outra vez o que eu pensava ter deixado para trás. Serei sempre um fiasco, no passado, no presente e para sempre. Falhar outra vez. Falhar pior*. Assisto ao desmoronamento da minha vida.
*(Nota da tradutora Tânia Ganho) 
Alusão às famosas palavras de Samuel Beckett: «Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor» 

Com esta palavras encaminhamo-nos para o fim do livro, mas também pesando o lado redentor dos livros e o ressignificar das memórias.
Um livro poderoso!

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

«Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos» de Olga Tokarczuk :: Opinião

 


"1
E, agora, tende cuidado!
Certa vez, tendo escolhido um Caminho perigoso,
um Homem justo caminhou com Humildade 
pelo Vale da Morte."

Em jeito de premonição assim começa «Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos», alertando para a Morte e trazendo consigo uma conclusão: o caminho pernicioso com que o Homem tem marcado a sua passagem pela Terra terá de ter os dias contados. A Natureza é divina e superior e precisa reafirmar a sua posição. 

"(...) São as estrelas e os planetas que estabelecem a ordem, o céu é o padrão segundo o qual surge o modelo da nossa vida. (...) Nada será capaz de escapar a esta ordem.
É preciso ter olhos e ouvidos bem abertos, associar os factos. Ver semelhanças onde os outros só vêem diferenças (...) E, ainda, não esquecer que o mundo é uma grande rede, um todo, e que não há nada que exista isoladamente. Que todo o fragmento do mundo, incluindo o mais pequeno, se encontra ligado a outros de acordo com uma complicada Correspondência Cósmica, difícil de deslindar pelas mentes comuns.
(...) A sua geração tem Plutão na Balança, o que enfraquece a capacidade de estar alerta. E acham-se capazes de equilibrar o inferno, mas não creio que o consigam fazer. (...) A realidade envelheceu, tornou-se senil, pois está sujeita às mesmas leis que todos os organismos vivos - o envelhecimento. Tal como as células do corpo, os seus componentes mais pequenos, os sentidos, também sucumbem à apoptose. A apoptose é uma morte natural, causada pelo cansaço e esgotamento da matéria. Em grego, a palavra significa «queda das pétalas». O mundo perdeu as suas pétalas."

A mensagem final é clara, mas a forma como a Prémio Nobel encontrou para conduzir o leitor é extremamente rebuscada e genuína pois encontra a sua voz na narradora Janina Duszejko, uma anciã que questiona o autismo testosterónico masculino, a tristeza genuína da Natureza e vê tudo tendenciosamente negro e meio desfocado como se olhasse a realidade por um caco de vidro fosco, orientado pelo alinhamento dos planetas e as cartas astrológicas que lhe permitem conhecer as pessoas e os eventos à sua volta.

"Tenho de tomar cuidado. Só agora me atrevo a confessar: não sou grande astróloga, infelizmente. No meu carácter existe um certo defeito, que tende a obscurecer a imagem da configuração dos planetas (...). Vejo como nos mexemos às cegas num perpétuo Crepúsculo. Vejo-nos como escaravelhos capturados em caixas por uma criança cruel. É fácil danificar-nos, ferir-nos, despedaçar a nossa existência extravagante e engenhosamente fabricada. Tudo isto eu interpreto como anormal, terrível e ameaçador. Só vejo Catástrofes. Mas se, no início, está a Queda, será possível cair ainda mais abaixo?"

É sem dúvida um livro extravagante, recheado de pequenas pérolas que conquistam o leitor, seja pelas considerações ou as brilhantes descrições da natureza envolvente e até as análises astrológicas que confundem o leitor. Mas superior mesmo é a condução do enredo por uma terra pedregosa e fria, onde a luz da lanterna que alumia a Escuridão se vai extinguindo fechando assim o ciclo da premonição inicial, a inevitabilidade da Morte!

Excertos:

 "Tenho uma Teoria. Acredito que aconteceu uma coisa terrível: o nosso cerebelo não foi devidamente ligado ao cérebro, e esta talvez tenha sido a maior falha da nossa programação. Fomos mal concebidos. Por conseguinte, o nosso modelo deveria ser substituído. (...)
Temos um corpo que é como uma bagagem incómoda. (...) A única Ferramenta, tosca e primitiva, com que nos brindam à laia de prémio de consolação foi a dor."

"- Podereis argumentar que não passa de um Javali - continuei. - Mas que dizer daquela enxurrada de carne que vem do matadouro e cai diariamente sobre a cidade como uma incessante chuva apocalíptica? (...) O mundo é uma prisão cheia de sofrimento, construída de modo que, para se sobreviver, seja preciso infligir dor a outros. Ouvistes? (...) desiludido com o que eu estava a dizer, se pôs a trabalhar; por isso, passei a dirigir-me apenas ao Caniche: - Que mundo é este? Um mundo transformado em almôndegas, salsichas, em tapete estendido junto à cama, em caldo feito de ossos de outro ser..."

"- Que vai ser de nós? - perguntou dramaticamente.
- Tem medo que os Animais nos matem também a nós?
Estremeceu.
- Não acredito na sua teoria. É absurda.
- Pensei que a senhora, como Escritora, tivesse imaginação e capacidades visionárias, e não se fechasse a ideias que, à primeira vista, possam parecer improváveis. Devia saber que tudo o que somos capazes de imaginar é uma imagem da verdade - concluí, citando Blake (...)"