quinta-feira, 29 de agosto de 2024

«Irmã Marginal» de Audre Lorde :: Opinião


Ler Irmã Marginal é entrar num território vivo e urgente, onde cada palavra é escolhida com a responsabilidade de quem sabe que o silêncio mata. A obra de Audre Lorde, aqui traduzida com enorme cuidado e sentido político por Gisela Casimiro, não se limita a somar ensaios; constrói uma constelação de ideias, feridas, revoltas e possibilidades que apontam para um horizonte comum: todas temos voz, e essa voz merece ser ouvida, em toda a sua complexidade.

“E quando as palavras das mulheres imploram por ser ouvidas, cada uma de nós deve reconhecer a nossa responsabilidade de procurarmos essas palavras, de as ler, partilhar e estudar a sua pertinência nas nossas vidas. Que não nos escondamos atrás da farsa das separações que nos foram impostas e tantas vezes aceitamos como nossas.”

Neste livro-colosso entramos livres de intimidações, cada texto é um convite de portas abertas à reflexão; feito de palavras que acolhem e desafiam à acção. O que nele encontramos não é um discurso hermético, mas um mapa de resistências e afetos onde o feminismo negro, a poesia, a maternidade, o erotismo e a pedagogia se cruzam como vias fundamentais para a sobrevivência e a mudança. E é ainda mais, porque é transversal a todas as mulheres e as suas lutas.

“A autoconexão partilhada é uma bitola da alegria que sei ser capaz de sentir, lembra-me a minha capacidade de sentir. Essa emoção profunda e insubstituível da minha capacidade de sentir alegria pede-me à vida que a viva sabendo que tal satisfação é possível e não temos de lhe chamar nem «casamento», nem «deus», nem «além».”

Em textos como "A poesia não é um luxo", Lorde devolve à escrita poética o seu lugar como forma de pensamento e de transformação. A poesia, diz-nos, é a expressão destilada da experiência. Mais do que ornamento, ela é ferramenta para imaginar novos modos de viver. Este é o primeiro gesto de empoderamento: resgatar a linguagem como campo de acção.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

«O nome que a cidade esqueceu» de João Tordo – Opinião

“Para quem isto que escrevo, então?
Resposta: Para ti, mas não para ti:
para mim; para ti em mim.”
J. M. COETZEE, A Idade do Ferro

Pelas palavras de Coetzee entramos na vida de Natacha e George B. e desde cedo sabemos que muito dos outros ficou dentro deles. Em parte, um muito que ficou por resolver e com quem fazer as pazes.

Embora as circunstâncias sejam muito distintas, fruto daquilo que não se controla; ambos estão exilados, não obstante serem livres. As suas acções estão presas ao passado, ao medo, à solidão, mas essencialmente ao medo de ter medo, de se magoarem ainda mais, de não saberem com quem contar.

Assim, o livro divide-se porque os dois caminharão em sentidos opostos, George B. não vai superar o seu isolamento, mas Natacha vai florir e abrir-se ao mundo e às pessoas. No meio, conheceremos as histórias de cada um deles e de quem ou o quê, os moldou a serem satélites. E pensamos...

De quantos satélites se compõe a nossa história? Quantos orbitam perdidos no espaço escuro e imenso que são as memórias e o passado? Quantos se tornam lixo espacial? Ou especial?
E o que é que os satélites têm a ver com a história? Muito! Os satélites e o espaço. O vazio!

domingo, 11 de agosto de 2024

Amy e Isabelle - Opinião - Opinião

“A vida, delicada como um tecido, podia ser rasgada pelos golpes caprichosos de um momento aleatório e egoísta.”

E a frase não podia ser mais verdadeira e transversal à história das mulheres que encontramos nos livros de Strout e mesmo este sendo o seu primeiro romance já se sente a provocação e o confronto geracional, especialmente no feminino e que povoará a relação mãe-filha em Barton ou até mesmo a forte e acutilante Kitteridge.

Em «Amy e Isabelle» uma insegurança disfarçada e uma certa indiferença, caracterizam filha e mãe, respectivamente e a conturbada relação entre ambas que de forma tentacular ultrapassa as fronteiras do doméstico, seja por estarem integradas numa comunidade próxima, seja porque a dada altura trabalham juntas. Ainda assim, a hostilidade aumenta entre as duas, depois do ambiente ficar envolto em mistério e segredos, transformando a atitude de cada uma, embora o início da idade adulta faça mais estragos que qualquer outro evento.

“O verdadeiro problema, claro, era que ela e a mãe passavam o dia todo juntas. Amy tinha a sensação de que as ligava uma linha negra, uma linha não maior do que um risco feito a lápis, talvez, mas, ainda assim, uma linha omnipresente.”

E essa linha nunca se apaga em todo o livro, tal como uma outra que une as mulheres do escritório, reforçando que quando é preciso são aliadas umas das outras, mostrando uma análise muito interessante por parte de Strout sobre os ambientes por onde o mulherio prolifera.

terça-feira, 16 de julho de 2024

«Acolher» de Claire Keegan - Opinião



"Acolher” de Claire Keegan lê-se enquanto se saboreia uma chávena de chá e confirma o que mais se ouve sobre as narrativas da autora: concisão e capacidade de sugestão. Cada linha mantêm a fina barreia entre o que é dito e o que por nós leitores é adivinhado.

Keegan narra o abandono de uma criança às mãos de uma família que não é a sua, mas que será a que tem meios para a sustentar e educar, enquanto se tecem sentimentos de forma subtil, lidos nas entrelinhas pelos desejos dos leitores de que aquela entrega corra bem.
A aceitação e o acompanhamento permitem à menina superar o medo do desconhecido e reconhecer aquela casa como sua. Mais até que a de origem, é certo. E embora o abandono seja o motor desta história, a forma como cada frase se torna leve, traz esperança e transforma um enredo que tinha tudo para estar ensombrado, numa história que enternece pelo poder do não-dito.

Ainda assim, não será pelo estilo de escrita que regressarei à obra da autora, falta-me pano de fundo, pontos de viragem, momentos de tensão, alimentados por descrições que me transportem para a acção. A economia de meios tão salientada em Keegan não me permitiu sequer ter tempo para temer pelos personagens.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

«Estela sem deus» de Jeferson Tenório :: Opinião


"Escutei e concordei com tudo. Não estava disposta a discutir nada com ele. Porque eu estava me aproximando do lado esquerdo do meu coração, então era preciso calar, calar até que o momento exato surgisse, até que meu grito pudesse sair puro e vulcânico, livre das amarras. Livre do peso dos homens.”
É curioso voltar a uma leitura através das frases a que se dá destaque, juntamente com um regresso ao livro anterior por aquilo que se escreveu, e ver as semelhanças que não foram sentidas aquando da leitura, no entanto, não é possível ignorá-las. A procura por um pai e a aspereza das relações entre as pessoas, juntamente com a racialização, a fé, a família, a educação (e os livros!) e o abandono, deixam feridas abertas em cada personagem e ESTELA não é excepção.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

«Sono» de Nick Littlehales :: Opinião

Ler «Sono» de Nick Littlehales é aprender que dormir 8h é um mito e só contribuí para a nossa ansiedade e é ficar desperto para termos como power nap, jetlag social, lâmpadas solares, dietas de luz, colchões e roupa de cama equivalente a nuvens, equilíbrio digital, a abordagem R90 e a controversa técnica de mouth taping.

"Ir para a cama quando não estamos cansados ou preparados para o fazer apenas causará problemas, e sentirmo-nos tensos por causa disso a meio da noite não nos ajudará a voltar a adormecer. Assim que começa a preocupação, libertam-se as hormonas do stress, como a adrenalina e o cortisol, e ficamos ainda mais alerta."

Mantendo essa ideia como a principal, já que o mito das 8h de sono é um "tamanho único" que claramente não serve a todos e juntando a organização do sono e do dia em períodos de 90m (Abordagem R90), sem esquecer que precisa tanto combater o jetlag social como reduzir o excesso de cafeína = «ser uma sombra nervosa de si próprio e claro» – e reduzir o nº de horas de uso de equipamentos, essencialmente o pc/tablet e o telemóvel.

Manter esta dieta de aparelhos e apimentar a vida com mais caminhadas, desporto em geral, música que estimule as ondas delta (para de noite) e as ondas beta (de dia!) e estipular períodos de 90m para organizar o dia-a-dia será o essencial para melhorar e reprogramar o cérebro para tempos de sono de qualidade.


Na Abordagem R90 há princípios básicos:
- acordar pelo menos 90m antes da hora de estar apto para o trabalho ou no trabalho;
- é importante manter sempre horário de acordar, mesmo quando não precisa, para não dar informações erradas ao organismo;
- organizar ciclos de 90m para estruturar o seu dia, seja com actividades, períodos de sono, de lazer;
- reduzir ou anular dispositivos antes de dormir (dieta de luz)

domingo, 7 de julho de 2024

«Terrinhas» de Catarina Gomes - Opinião

“Quer queira quer não, nas minhas memórias mais antigas parece que descubro batatas. Sempre me foram íntimas. Na casa onde eu cresci dava a impressão de que até tinham direitos”.

É entre batatas, memórias, medos e sacrifícios, e segredos, que a vida de Cláudia se estruturou. Uma vida que a partir de certa idade repele a terrinha e as perguntas que ficaram por fazer. As heranças e as coisas das quais se sabe pouco, como sempre soube pouco sobre batatas. Esse enigma, essa obsessão… onde residia o segredo que tornava as batatas da terrinha melhores que quaisquer outras?

“Durante meses a fio comprei batatas nos mais variados sítios, de mercearias a minimercados, supermercados e hipermercados. Só precisava de uma de cada vez. (…)
Pegava na batata solitária recém-comprada, numa das sobreviventes, e cozia-as às duas. Não lhes saboreava diferenças. E isso provocava em mim emoções diversas. A ausência do sabor distintivo fazia-me sentir cada vez mais próxima do dia em que as conseguiria mandar a todas embora, da libertação. Ao mesmo tempo, entristecia-me a ideia de que, ao que tudo indicava, as batatas que restaram não tinham nada de especial, que afinal eram iguais às que se podiam comprar em qualquer loja de esquina por tuta-e-meia.
Por medo de ver essa constatação a aproximar-se, persisti. Uma vez, estava a dar na televisão um programa sobre vinhos. Resolvi imitar o que vi os enólogos fazer: deixava os pedaços de batata tardarem-se-me longamente no palato, até se desfazerem.”

segunda-feira, 17 de junho de 2024

"O segredo dos teus olhos" de Eduardo Sacheri :: Opinião

“O segredo dos seus olhos”, aclamado primeiro romance de Eduardo Sacheri, foi adaptado ao cinema por Juan José Campanella, arrecadando diversos Prémios, entre eles, o Óscar de Melhor Filme Internacional (2010) e um Goya e ainda em 2016 foi inserido na lista dos 100 Melhores Filmes do Século XXI pela BBC. As ovações não são em vão, tanto livro como filme são dois objectos de culto distintos e amplamente intensos.

“Muitas vezes me surpreendeu notar no meu espírito certa alegria culpada perante os horrores alheios, como se a circunstância de sucederem coisas pavorosas aos outros fosse um modo de afastar da minha vida tais tragédias. Uma espécie de salvo-conduto.”

Benjamín Chaparro era o dono desse salvo-conduto, no entanto, um homicídio de uma bela mulher e o coração dilacerado do marido porão chaparro numa luta obstinada por descobrir o culpado, como se esse crime lhe desse “a oportunidade de ver reflectidos, nessa vida destroçada pela dor e pela tragédia, os fantasmas dos meus próprios medos.” 

domingo, 16 de junho de 2024

«O Samaritano» de Mason Cross - Opinião

Mason Cross tem publicada em Portugal a trilogia dedicada a Carter Blake, um operacional que satisfaz os pedidos do FBI quando é preciso encontrar quem não quer ser encontrado. A história que acompanha o percurso deste asset não é desconhecida das séries do grande público ou dos enredos típicos dos page turners habitualmente viciantes e frenéticos. E embora se perceba que mais tarde ou mais cedo, Blake saberá demais e tornar-se-á ele mesmo um alvo, a história não desilude, antes pelo contrário, é a perspectiva e os conhecimentos do próprio Blake que aceleram o ritmo da acção. 

Em «O Samaritano» a acção centra-se num homem que supostamente ajuda mulheres cujos carros avariam à beira da estrada. Mas será que avariam mesmo? Será ele uma ajuda?

Claro que não! No entanto, não é nada a que os detetives Allen e Mazzucco não estejam habituados: as mulheres são os alvos principais de determinado tipo de crime e o nível de violência tem escalado nos últimos, mas os corpos que agora são encontrados têm uma mutilação caraterística, um corte que é uma assinatura. 

No rasto dessa assinatura surge Blake, que desconfia de um outro profissional que ele conheceu bem.

“- É um local ótimo para se largar corpos e não se trata do trabalho de um novato. Até um recruta o perceberia imediatamente, (…).

Era verdade. Tudo o que haviam visto até ali apontava para que o corpo fosse a última vítima de uma série, e não um crime isolado. As feridas da tortura mostravam paciência, deliberação, confiança. Comedimento, até, se isso não fosse uma contradição. Tivera o cuidado de manter a jovem viva durante algum tempo. O golpe mortal fora desferido com determinação absoluta, à primeira tentativa. Várias pessoas tinham comentado o profissionalismo da sepultura. A sorte fora a única razão para o corpo ser descoberto. Tudo somado, apontava para a obra de um assassino experimentado. Mas não era a verdade completa. A verdade completa necessitava de mais reflexão antes que ela a revelasse a alguém, incluindo o homem em quem mais confiava no departamento. Sabia apenas que haveria mais corpos.”

Skills, calculismo, paciência e anos de treino, confiança e premeditação, anonimato, liberdade e impulsos homicidas tudo combinado com sorte, muita sorte a favor de um assassino que opera como um fantasma, até que um aluimento de terras o deserdou da sorte que lhe tem permitido correr o país a matar e a ocultar corpos. Crozier tem a preparação certa para continuar a sua obra: “Sem um corpo é impossível decidir conclusivamente que um desaparecimento é o resultado de um crime”, mas o facto de Blake conhecer o seu traço (o serrilhado da sua faca de mato) vem atalhar os planos de Crozier e bem sabemos que quando a pressão aumenta, os erros surgem.

E quando o caos se instala, todos são suspeitos e Blake não passa de consultor que oferece os seus serviços a troco de nada. E todos sabem que não há almoços de borla. Especialmente os detetives.


sexta-feira, 7 de junho de 2024

«O que é o quê, a história de Valentino Achak Deng» de David Eggers - Opinião


"(...) o mundo que conheci não é muito diferente do retratado nestas páginas. (...) sabíamos que as nossas histórias tinham de ser bem contadas (...) nenhuma privação ou perda era insignificante."

As palavas são do próprio Achak Deng sobre a forma que David Eggers encontrou para biografar grande parte da vida deste «lost boy» vítima da guerra civil e da ebulição étnica que vem assolando o Sudão, especialmente o Sudão do Sul, desde 1972 com a quebra do acordo de Addis Abeba, dividindo ainda mais a região e as suas diferenças étnicas e fundamentalismos religiosos e daí o título, porém, pode até ser uma metáfora para tudo o que aqui é contado, tornando difusa a linha que separa a realidade da ficção, não obstante, a violência, o abandono, o medo e as dificuldades e a enorme miséria por que qualquer povo passa perante a perseguição; ficando por vezes confuso saber quem persegue quem e porquê.

"Diz-me, onde está a tua mãe, Michael? Alguma vez a viste aterrorizada? Nenhuma criança devia ver tal coisa. É o final da infância quando vemos o rosto da nossa mãe sem expressão, os olhos baços, mortos. Quando fica derrotada ao ver simplesmente a ameaça a aproximar-se. Quando não acredita que é capaz de nos salvar."

terça-feira, 4 de junho de 2024

«Cem anos de perdão» de João Tordo :: Opinião

Se «Águas Passadas» não movem moinhos, ladrão que rouba ladrão tem «Cem anos de perdão». E estivessem certos os provérbios, o ritmo dos thrillers de João Tordo teriam por certo outro tom e embora este «Cem anos de Perdão» ainda comece com algum humor, rapidamente o cenário do crime anula qualquer risada que pudéssemos dar com um dupla de polícias trôpegos, no meio de uma ilha remota algures ao largo de Inglaterra. Aliás, Cícero está preso e o cenário na prisão está pejado de predadores e Pilar sobrevive na fria Helsínquia, rodeada de homens feios e pesadelos que adensam os seus traumas.

"(...) os pesadelos persistiam. O clarão. A memória dos dias no hospital. Os ossos do rosto desfeitos, os dentes perdidos. A recuperação lenta, morosa. Alguém lhe dissera que uma pessoa precisava de oito anos para resolver um trauma, se fosse assumido e tratado. Quanto tempo demoraria daquela maneira - oitenta anos?
(...)
O desejo, o sexo, o jogo do gato e do rato, a adrenalina que, temporariamente, lhe mitigava a ansiedade. O regresso, uma e outra vez, ao mesmo ritual perverso. Quando desligou, lembrou-se das <<características», repetidamente lidas nas reuniões: Temendo o abandono e a solidão, ficamos e regressa- mos a relações dolorosas e destrutivas, escondendo a nossa dependência de nós e dos outros, cada vez mais isolados e alienados dos amigos, das pessoas que amamos, de nós próprios, de Deus."

domingo, 26 de maio de 2024

«Águas passadas» - de João tordo :: Opinião

"Fui eu quem a descobriu, à afogada, no meu passeio matinal pela arriba. E a culpa nasce precisamente daí - de o meu temperamento melancólico se alimentar positivamente da morbidez; de o sofrimento ser o seu húmus mais fértil. Ao encontrar o cadáver, a minha vida ganhou novo alento.
Vergonhosamente, desabrochei."

É com esta descrição dele mesmo que Cícero se apresenta. Parte do alento que tinha perdido, sabemos em breve, deve-se à falta que Simples lhe faz, o cão que morreu faz pouco tempo. Mas a maior parte do seu sofrimento data de anos, muito antes de se ter tornado um eremita à beira da falésia na escarpada Azóia. E logo aí conquistou a minha atenção. Eu vi-me, contemplativa como Cícero e acompanhada de um cão, nos trilhos que serpenteiam o precipício com vista para o Atlântico. 

E claro, ter sabido que a série está a ser adaptada para série televisiva, colocou a leitura noutro nível. Eu ia lendo e fazendo o meu próprio casting. 

Quando o corpo de Charlie é descoberto, ficamos a conhecer a Subcomissária Pilar Benamor, a quem é pedido: "caso decida ir buscar a pobre rapariga ao Inferno, por favor, não olhe para trás no regresso.". Evocando o mito de Orfeu, o legista parece adivinhar os horrores que aí irão, embora Cícero já nos tenha dito que ele voltará a matar.

terça-feira, 14 de maio de 2024

«Quarto de despejo» de Carolina Maria Jesus - :: Opinião

"O que aborrece-me é elas vir na minha porta para perturbar a minha escassa tranquilidade interior (...) Mesmo elas aborrecendo-me, eu escrevo. Sei dominar meus impulsos. Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei formar o meu carater. A unica coisa que não existe na favela é solidariedade. Veio o peixeiro Senhor Antonio Lira e deu-me uns peixes. Vou fazer o almoço. As mulheres sairam, deixou-me em paz por hoje. Elas já deram o espetaculo. A minha porta atual- mente é theatro. Todas crianças jogam pedras, mas os meus filhos são os bodes expiatorios. Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. Elas tem marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de caridade.

Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer especie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos socegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas."

domingo, 5 de maio de 2024

«Cadente» de Mário Rufino - Opinião

«Cadente» de Mário Rufino é um livro escrito com coragem — a de olhar de frente a degradação trazida pela doença e o que ela impõe a uma relação familiar íntima, na estreita proximidade com o narrador deste relato que se move entre a contenção e a exposição, entre o silêncio do que já não pode ser dito e o grito contido daquilo que ainda precisa ser narrado.

No centro está a relação entre neto e avó — atravessada pelo abandono maternal, a morte, a doença e as memórias de um crescimento atribulado e claro, por tudo o que se perde com o passar do tempo e um certo abandono próprio da correria das vidas que divergem.

Há momentos de grande beleza que nos ficam através de frases lapidadas pela precisão de quem escreve para gravar bem uma ideia no leitor, mas o texto nem sempre consegue manter essa marca e a tensão, oscilando entre o esculpido e o tom mais solto, enquanto navega por um rol de memórias, entre nostalgia e culpa, num acerto de contas à mercê do tempo que ainda lhes resta.

terça-feira, 30 de abril de 2024

«Três» de Valérie Perrin :: Opinião

Quando nos dizem que um livro tem uma personagem que é parecida connosco a curiosidade fervilha e a leitura é inevitável, certo?

Foi o que aconteceu com «Três» de Valérie Perrin e também por ser um livro que vem com banda sonora e ter música faz toda a diferença. 

Ainda assim, para as aventuras de Nina, Adrien e Étienne e claro Virginie 😉 faltaram algumas como, «She lost control», uma ou outra incontornável dos Depeche; ou então, basta colocar a masterpiece dos Nirvana, «Nevermind» e deixá-lo em repeat.

“And for this gift I feel blessed
Our little group it's always been
And always will until the end”


Ainda assim, desde o início, a minha cabeça cantarolou muitas vezes a eterna «Le Temps De L'amour» de Françoise Hardy, muito por culpa desta introdução:

domingo, 28 de abril de 2024

«A mãe e o crocodilo» de José Gardeazabal - Opinião

“A minha mãe conta que comecei a caminhar para trás. Ela dava-me a mão e eu avançava de costas, sem sequer olhar. Não acredito. A minha mãe diz que foi precisa imensa paciência até eu me resignar a andar para a frente.”

“Os sentimentos são um lago onde as pessoas se molham até ao pescoço e eu estou do lado de fora porque não sei nadar.”

Este é Vladimir e nós vamos continuar na dúvida como ele. Ou vamos duvidar dele. É uma escolha do leitor e vai determinar o quanto nos podemos divertir, sensibilizar, rir ou chorar com as dúvidas dele, do crocodilo e do gato que domem juntos no cimento, com a mãe, os vizinhos e vamos ainda pensar nas suas dores e dúvidas perante o mundo. Vamos cavalgar juntos no crocodilo e filosofar com eles. 

“A minha mãe está há três anos a falar sozinha a tentar dizer o que pensa. Não é muito tempo.”

Vladimir é filho de pai solteiro e mãe solteira, vive a cuidar da mãe e de Benito, o crocodilo 🐊 Vivem os três à procura de se compreenderem enquanto esperam o futuro, porque o futuro é um sítio onde se pode gritar, mas... “Na nossa casa, o passado e o futuro são tão iguais que não lhes vemos a cara quando dançam.” 

Fora de casa, divide as horas entre o trabalho, onde salva o mundo à mão, ou seja, recicla e o supermercado alemão que vende coisas baratas, ajudando assim a alimentar o mundo que lhe dá de comer. Um mundo de flores de plástico, comida de plástico, ideias de plástico... tudo pronto a reciclar. É a era do capitalismo verde.

“Reciclar rima com ressuscitar. Foi a nós, pobres trabalhadores, a quem confiaram a ressurreição do mundo. Não é pouco.”

Mas e o amor? Como e onde se recicla?

“O amor, para mim, é primeiro imaginação e depois realidade. Para mim, amar uma mulher é ficção. Ficção e mentira são coisas diferentes, os pobres e os sozinhos precisam muito de ficção.”

Vladimir diz gostar de mulheres, mas não tem nenhuma para troca ou reciclagem, seja no passado ou para o futuro, mas isso que importa se o presente se faz de palavras alemãs, críticas ao progresso, debates sobre a Lua, a crise da habitação, a reciclagem e os subsídios, a emigração e a política... Eles (Vladimir e os amigos) avançam reacionários contra tudo e eles mesmos. Os despedimentos, os temporários, os arrendatários, os imigrantes, os plásticos e a fábrica. Reacionários e unidos eles são um substantivo maior - eles estão (são?) sindicalizados.

“Os mais velhos lembram-se, normalização quer dizer que vai morrer gente. Racionalização, que a matança será organizada. (...) Um ano depois do fim da reciclagem (e já depois do fim da mina) as pessoas pareciam transparentes, de uma maneira má (…) a pobreza perdeu o seu romantismo, não há mais nada a perder.”

Mas o que interessa isso tudo se o que Vladimir quer gritar ao megafone 📣é sexualmente activo, já sem pausas, sem vírgulas... SexualmenteActivo, uma palavra só, uma palavras que rima sem coxear. Rima com Noor.

E afinal, onde entra a mãe e o crocodilo no meio disto tudo?

O leitor talvez saiba. Ou não! E tu, vais continuar na dúvida?

“Uma luzinha entra pela claraboia. Suspeito de um sol extraordinário do lado de fora. Não saio, para continuar em dúvida.”

terça-feira, 16 de abril de 2024

«Amor estragado» de Ana Bárbara Pedrosa :: Opinião

"Um dia, depois de um bagaço, desabafei com um amigo, que tinha sido burro e era padre. Coitado, aquilo dava-me pena. Passava os dias no meio de velhas beatas e nunca ia saber que o único milagre que existe está num corpo de uma mulher a dizer que não quer mais."

Que se sublinhe "num corpo de uma mulher a dizer que não quer mais"

Embora seja uma premissa mais do que errada, abusiva, violenta, tóxica e transtornante, essa é a premissa para se entrar na cabeça do Manel, e por sua vez, na voz que a Ana Bárbara tão acutilantemente criou para nos destabilizar com esta história desestruturante e destruidora de tudo o que pode ser uma relação e uma família, menos amor, desejo, compreensão, empatia, cumplicidade ou sequer intimidade. Tudo o que aqui nos surge perante os olhos e nos assome à garganta como asco e vómito, é uma dura e triste realidade. É a realidade de muitas famílias, mulheres e filhos. Uma realidade que pode estar debaixo do nosso nariz, na porta ao lado, no quarto por baixo do nosso, na nossa família, na casa do nosso irmão. É a realidade e nós fazemos parte dela. Por isso, metade do asco, da aspereza e da realidade está-nos debaixo das unhas e isso é feito com uma mestria brutal e desarmante, conseguida nesta escrita crua e estragada de Ana Bárbara.

terça-feira, 2 de abril de 2024

«Lições de Grego» de Han Kang - Opinião

Não aprendi grego, mas como se costuma dizer, vi-me grega para chegar ao fim deste romance labiríntico e enigmático de Han Kang. Não chegam a ser duzentas páginas, mas o leitor fica perdido entre as aulas, o mutismo, as ideias complexas, a dificuldade de apanhar o fio à meada. Chega a faltar o ar!

É que as vozes mudam e o leitor tem alguma dificuldade em perceber quem é quem, embora se perceba que o peso do outro e de outras fases da vida sejam tão ou mais importantes que o presente, em que um homem, o professor de grego, está a cegar e uma mulher, a aluna, encerrada no seu mutismo, não toma a palavra. 

Nesse aspecto, a narrativa está bem conseguida, ela não fala e quer sumir-se para dentro de si e da escuridão das suas roupas negras, então a narração é assumida por um narrador que tudo sabe. Que fala por ela.

“A única pessoa que sabia que a sua vida estava violentamente dividida em duas era ela própria. As palavras que anotava na parte de trás do diário contorciam-se por vontade própria, formando frases estranhas. De vez em quando essas palavras metiam-se no sono como espetos…”

No caso do professor, ele quer falar, precisa falar, então é-lhe dada voz enquanto recorda a fuga para Alemanha e o regresso à Coreia do Sul, um pai, uma mulher…

sábado, 16 de março de 2024

«Um Grito de Amor Desde o Centro do Mundo» de Kyoichi Katayama - Opinião

Enquanto lia este livro, cruzei-me com uma frases que anotei aquando da leitura de «Os Abismos» de Pilar Quintana: "todas as minhas histórias preferidas trazem um aviso qualquer" e eu acrescentaria, todos os livros que leio, goste muito deles ou não, trazem frases que desde o momento que são lidas me ficam na cabeça.

"É surpreendente o quão puro te tornas quando pensas que o futuro não é possível, mas, quando percebes que estás vivo, os teus desejos renascem."

Eu não conhecia o fenómeno em torno da história de Sakutarô e Aki, a série mangá e o filme, e nessas adaptações está muito da essência do livro: a filosofia de vida dos adolescentes, as reflexões que fazem e as atitudes perante o confronto com a morte precoce. Haverão por certo diferente formas de olhar ao enredo, é previsível e já um tanto gasto, mas como disse, a essência está nas conversas entre os personagens, seja ente Sakutarô e o avô ou mesmo entre os jovens amantes, ainda assim foi um livro que me cativou pouco, embora tenha gostado da forma que Katayama encontrou para descrever os personagens e dar espessura aos sentimentos, sensações e relações.

terça-feira, 12 de março de 2024

«A Axila de Egon Schiele» de André Tecedeiro :: Opinião

 


“(…) Mas antes disso, esfreguei as mãos na terra.

Não teria conseguido se não estivessem vazias.”

 

Se oscilarmos pela poesia de André Tecedeiro, ao sabor dos humores do dia-a-dia, encontramos sempre algo que nos anime. Ou que nos faça pensar. Não propriamente no sentido de desarranjar a cabeça. São palavras simples. Assim parecem.

“Cada um lê no poema,

o poema que traz em si.”

quarta-feira, 6 de março de 2024

«A Nação das Plantas» de Stefano Mancuso :: Opinião


O novo livro de Mancuso é uma apologia aos seres vivos mais vulneráveis e frágeis, facilmente esquecidos ou ignorados e cada vez mais ameaçados. O objectivo do autor é claro: demonstrar para conhecer e conhecendo, sermos incapazes de ignorar ou não defender esta nação das plantas. Uma nação da qual fazemos parte e vamos querer continuar a pertencer. Não compreendê-la é querer viver à margem, numa bolha. Mas atenção, a bolha está prestes a rebentar!

“Ao percecionarmos as plantas como algo mais próximo do mundo inorgânico do que da plena vida, cometemos um erro fundamental de perspetiva, que nos poderá custar caro. Para tentar remediar a escassa consciência que temos do mundo vegetal e a baixa estima pelo mesmo, dado que nós homens compreendemos somente as categorias humanas, este livro trata as plantas como se todas elas fizessem parte de uma nação, ou seja, de uma comunidade de indivíduos que partilham a mesma origem, história, organizações e objetivos: a Nação das Plantas. Ao olharmos para as plantas como quem olha para uma nação humana, os resultados são surpreendentes.”

“(…) os fungos têm uma biomassa seis vezes superior à dos animais (12 gigatoneladas). As plantas (450 gigatoneladas) representam mais de 80% da biomassa da Terra, e os homens, com as suas 0,06 gigatoneladas, significam uma mísera percentagem de 0,01%. É evidente que não é em virtude do nosso número que exercemos a soberania no planeta. Pelo seu número e relevância, a soberania da Terra deveria pertencer às plantas.”

Continuar a ignorar os factos sobre o peso da importância das plantas e da sua necessidade fulcral, juntamente com os actos inconscientes dos humanos e a distância mantida como se habitássemos um planeta à parte (a tal bolha), só pode, na visão de Mancuso, dar um resultado semelhante ao do horror e do mal causado pelo Holocausto. Perpetuá-lo por desconhecimento já nem sequer é aceitável, uma vez que todos os tipos de debates têm deixado claro os possíveis desfechos. Ainda assim, Mancuso sublinha:

“As afirmações de Arendt foram à época julgadas irracionais. A tese de que numa dada organização hierarquizada na qual: 1) exista suficiente distância entre a própria ação e os resultados da mesma, 2) a autoridade seja forte, 3) as relações no interior da hierarquia sejam despersonalizadas, é possível recriar o horror do Holocausto afigurou-se totalmente inaceitável para a maioria. O que Arendt escreveu escandalizou o mundo: não só o Holocausto podia acontecer novamente, como qualquer um podia ser responsável por ele.”

Mancuso não pretende chocar, mas pretende enviar um forte alerta. Somos todos responsáveis pelos danos ao planeta, essencialmente e embora não se consiga adivinhar a extensão total dos danos, não podemos ignorar o que está a acontecer diariamente diante dos nossos olhos. A militância deveria ser diária também, especialmente porque todos os anos estamos cada vez mais cedo a atingir o Earth Overshoot Day (EOD).

“Todos deveriam ser mobilizados, e se acham que estou a exagerar e não veem qualquer razão para se levantarem do sofá a fim de defenderem o ambiente e as florestas, então fiquem a saber que esta é a única e verdadeira emergência mundial. A generalidade dos problemas que afligem atualmente a humanidade, mesmo que aparentemente longínquos, estão relacionados com a ameaça ambiental e representam apenas os sintomas inofensivos daquilo que está para vir se não enfrentarmos esta questão com a devida firmeza.”

O uso e abuso de recursos já incapazes de se regenerar é uma emergência maior que todas as outras, um dano irreversível para o ecossistema terrestre e para a própria sobrevivência da espécie humana. E mesmo embora se reconheçam capacidades exclusivas e extraordinárias à Nação das Plantas, as suas estratégias de adaptação e sobrevivência não são inesgotáveis e muitas delas são fruto da característica que mais as distingue: a sua falta de movimento, que os cientistas muito têm estudado na tentativa de aplicar a outros seres vivos, no entanto, essa enorme sensibilidade está proporcional a milhares de anos de evolução e epigenética. E claro, de cooperação. E com estes exemplos de «apoio mútuo» muito se poderia aprender, uma vez que têm sido determinantes para a evolução inter-espécies e este detalhe é o mais fascinante. No obstante, a competição que existe por água e luz, a competição versus cooperação exige evolução e resiliência, gerando estratégias de sobrevivência e progresso das espécies de plantas.


Carta dos Direitos das Plantas


Artigo 1.º - A Terra é a casa comum da vida. A soberania pertence a cada um dos seres vivos.

Artigo 2.º - A Nação das Plantas reconhece e garante os direitos invioláveis das comunidades naturais enquanto sociedades assentes nas relações entre os organismos que as compõem.

Artigo 3.º - A Nação das Plantas não reconhece as hierarquias animais, fundadas em centros de comando e funções concentradas, favorecendo antes democracias vegetais difusas e descentralizadas.

Artigo 4.° - A Nação das Plantas respeita universalmente os direitos dos atuais seres vivos e os das próximas gerações.

Artigo 5.° - A Nação das Plantas garante o direito a água, solo e atmosfera limpa.

Artigo 6.º - É proibido o consumo de quaisquer recursos naturais não renováveis para as gerações futuras de seres vivos.

Artigo 7.º - A Nação das Plantas não tem fronteiras. Todos os seres vivos são livres de se deslocarem, transferirem e viverem nela sem qualquer limitação.

Artigo 8.º - A Nação das Plantas reconhece e incentiva o apoio mútuo entre as diferentes comunidades naturais de seres vivos enquanto instrumento de convivência e de progresso.


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Este livro foi lido a propósito de um desafio proposto para 2024 na RODA DOS LIVROS



sábado, 24 de fevereiro de 2024

«O assassino cego» de Margaret Atwood - Opinião

“A única forma de escrever a verdade é partir do princípio que aquilo que se escreve nunca vai ser lido por ninguém. Nem por outra pessoa, nem mesmo nós próprios, mais tarde. De outra maneira começamos a desculpar-nos a nós próprios.”

Esta é a premissa de «O Assassino Cego» onde Iris Chase escreve para se confessar, mas não pede perdão. Narrada ao ritmo da sua velhice: “cada vez mais me sinto como uma carta – depositada aqui, recolhida ali. Mas uma carta que não é dirigida a ninguém.” Ou é, nem que seja a si mesma, enquanto se ouve a recontar, detalhadamente os acontecimentos. É uma caça às recordações.

“Um pássaro vivo não é a mesma coisa que os seus ossos etiquetados”

Nas primeiras cinquenta páginas temos elementos-chave para toda esta narrativa complexa e descritiva. 

As mulheres sem língua, inchadas por aquilo que as obrigam a calar, é apanágio da época. Calar as mulheres, casá-las para salvar a honra e as fortunas depenadas das famílias, entregá-las aos conventos ou à religião… tudo se justificava pelo papel submisso e secundário da mulher numa sociedade onde “havia muitos deuses. Os deuses dão sempre jeito, justificam quase tudo…” ainda assim, a narradora-protagonista, Iris Chase diz que à luz quente de uma chama, quando confrontados com a verdade não somos mais que ossos e “Sabe Deus que ossos roí durante o sono.”

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

«O vento mudou de direção» de Simone Duarte :: Opinião

Os ataques terroristas às Torres Gêmeas geraram ondas de pânico e pavor, de alterações à segurança e ao entendimento que os americanos (e o resto do mundo) têm face aos árabes e aos muçulmanos. Mas mais que tudo, o 11 de Setembro gerou uma Guerra ao Terror levada a cabo pelos Estados Unidos com o maior contingente de sempre a invadir e a permanecer num país estrangeiro, causando uma destruição massiva e um terror tentacular que se estende a diversas geografias para além do Afeganistão, do Iraque e do Paquistão. 

Em «O vento mudou de direção», Simone Duarte narra isso mesmo, a realidade tentacular dos efeitos colaterais de um atentado com consequências devastadoras: "Os americanos tiveram um 11 de Setembro. Nós continuamos a viver o nosso 11 de Setembro até hoje."

Esse «nós» são sete pessoas específicas que a jornalista entrevistou e conheceu, denunciando aqui como a realidade destas pessoas, representa infâncias, juventudes, profissões, famílias, sonhos, futuros... países, totalmente estilhaçados e hipotecados. Vítimas esquecidas, perdidas entre o medo e o terror paralisante de quem teve a guerra à porta de casa. Vítimas resgatadas mas atiradas para os meandros de uma imigração forçada. Refugiados para quem mudou tudo e não encontram referências em nada. Cidadãos de países em risco de se transformarem para sempre e com eles, o destino de todas estas pessoas.

"Entrou no país com um visto que só tinha validade de 10 dias. O prazo havia expirado e ela precisou de decidir entre voltar para Cabul sob a ameaça diária de atentados suicidas ou ficar num país em que o medo não a paralisaria. Não haveria outra hipótese. Só não imaginou que passaria esta primeira noite na cadeia." (Gawhar, Viena 2016)

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

«Poeta Chileno» de Alejandro Zambra - Opinião

A forma como chegamos a cada livro é quase tão importante como a leitura em si. Cada vez mais acredito que as expectativas e as histórias em redor de um livro, tema ou autor, podem determinar o rumo de uma leitura. Tanto que por vezes nem lemos o que lá está. Lemos o que achámos que íamos ler. Parece complexo, mas é essencialmente o poder da influência e claro, da auto-sugestão. Quando a coisa começa a correr de outra forma, a opinião enviesa e a leitura sofre com isso.

Quando ouvi falar deste livro, pela voz de Giovana Madalosso em conversa com Mariana Alvim, a forma como a autora brasileira descreveu aquela relação fragmentada entre pai e filho, eu fiz (só pode!) todo um desenho do livro na minha cabeça com o bónus de ter um gato à mistura. Sobre o livro propriamente dito eu não fui ler nada, a recomendação sentida e entusiasta chegou, especialmente porque eu tinha lido há pouco - e gostado muito - de «Tudo pode ser roubado», portanto o livro de Alejandro Zambra só podia ser bom.

E foi! 

Só não foi mais por culpa desta impaciência que eu às vezes deixo que tome conta das leituras, mas que felizmente já se amenizou quando eu vou escrever e quando me deparo novamente com o texto, com detalhes que eu mesma sublinhei, com passagens que eu marquei, toda uma selecção de momentos que me dão um novo olhar sobre o livro. É um olhar melhor. E aí apercebo-me de que gostei mais ainda da leitura e li efectivamente o que lá estava. A citação abaixo é a prova disso.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

«Pequena coreografia do adeus» de Aline Bei – Opinião

Uma garota que deseja ser uma música bonita que desparece quando é rádio é desligado, pede ao espelho que não se apaixone por ela. Mas cedo vai descobrir que mesmo sem espelho, mesmo invisível, as são coisas existem e doem. E que mesmo as coisas bonitas se fazem em cacos, como aqueles que colecciona.

“as brigas dos meus pais foram virando o chão onde pisávamos.
o silencio da casa era sempre uma fermentação.”

Decepção atrás de decepção.

“(…) uma conversa em família
Nunca foi possível, não em minha casa
Lá somos três solitários
Irreversíveis
Gravemente feridos
Da guerra que travamos contra nós.”

Abandono atrás de abandono. Numa solidão que povoa tudo, Júlia cresce.

“sentia-me um verdadeiro Pêndulo: ora caminhando
solenemente para a presença materna, ora fugindo
de qualquer possibilidade de mãe.”

Caco atrás de caco, o Pêndulo sente-se um amontoado de destroços, mas mesmo os cacos fermentam, na linha ou cola que os une e mesmo nos destroços entra luz e gera vida e a família cresce mesmo só com uma. Ela! Júlia, cresce e floresce e vai escolhendo quem quer ter por perto, aprendendo a gerir distâncias e expectativas.

“os estranhos não nos doem porque ainda não nos dececionaram
e se mantivermos tudo a uma boa distância: seguirão sendo
essa doce incógnita.”

Porém a vida não pode acontecer com tudo à distância, é preciso ir ensaiando pequenas coreografias de adeus.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

«Temporada de Furacões» de Fernanda Melchor :: Opinião

«Temporada de Furacões» de Fernanda Melchor é uma narrativa gargantuesca que se desenrola a um ritmo frenético, não só pela forma como os eventos acontecem (pelo menos até certa parte), mas pela escrita de Melchor, uma escrita de tirar o fôlego, como se subíssemos uma escadaria enorme. Interminável. Onde cada degrau é bem maior que o anterior e precisamos sempre de balanço para continuar a subir. As frases – e sim, as frases – muitas delas são de mais de uma página e narram uma enorme miséria, sofrimento e violência, mas ao mesmo tempo demonstram a riqueza bruta da escrita da autora.

A escrita é o furacão!

“(…) com os cabelos despenteados e as faces rosadas pela emoção, as mulheres da terra benziam-se porque podiam imaginá-la nua, a montar o diabo e a afundar-se na sua verga grotesca até à empunhadura, com o sémen do diabo a escorrer-lhe pelas coxas, vermelho como lava, ou verde e espesso como as mistelas que borbulhavam no caldeirão em cima do lume e que a Bruxa dava a beber às colheradas para as curar dos seus males…” 

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

«Limpa» de Alia Trabucco Zéran :: Opinião

"A mulher ficou calada.
Ele pediu-lhe por favor.
Ela levantou-se, ajeitou a saia, pegou no casaco e na mala.
- O que define uma tragédia - disse a mulher -, é que sabemos sempre como acaba."

Podia escolher o epílogo com as palavras de Camus, mas estas são tão ou mais agitadoras, quantas as vezes forem recordadas ao longo da leitura.

A senhora dona Mara López:
"Havia qualquer coisa nela. Era como um... deixem-me pensar. Um desapego. Ou não. Essa não é a melhor palavra. Um desprezo, é isso. Como se todos a aborrecessem ou lhe repugnasse todo e qualquer tipo de cumplicidade. Pelo menos era essa a sua aparência. A máscara que cuidadosamente colocava todas as manhãs."

O senhor doutor Jensen:
"Não sei descrevê-lo melhor, talvez vocês me possam ajudar. Como definiriam uma pessoa que não fuma, que quase não bebe, que antes e pronunciar uma palavra a pesa e calcula, de forma a evitar exageros que o façam perder tempo. Um homem  obcecado pelo tempo. (...) uma perpétua contagem decrescente."

Falta apresentar a menina. A patroa mais pequena. 
A menina morreu. 
Sim a menina está morta! A história pode ter vários inícios, mas o desfecho é esse. A menina morreu. A menina filha dos patrões está morta!

sábado, 13 de janeiro de 2024

«Raparigas da Província» de Edna O’Brien - Opinião

Li com muito interesse, sofreguidão e até sofrimento o livro, «Menina» de Edna O’Brien, e fui em busca desse efeito quando agarrei em «Raparigas da Província», talvez porque a menina-mulher na capa, no seu ar frágil, mas de expressão forte, ao mesmo tempo ausente e misterioso, captou logo o meu interesse. E sim, ainda vou a muitos livros pelo magnetismo de uma boa capa, mesmo quando se trata de um livro de início de carreira, como é o caso deste que data de 1960.

Ambas as leituras têm quase 60 anos de diferença. 60 anos de produção literária 😉 mas o génio de O’Brien já lá está, com cerca de 30 anos. 

O brilhantismo de em poucas palavras, criar imagens fortes, as personagens com valores, mas que se questionam no seu moralismo (e o dos outros), as preocupações com grandes temas, felizmente posicionando as mulheres no centro das narrativas, mesmo que expondo as suas fragilidades e condicionantes, sem que para isso os homens sejam demonizados. Muito por isto, mas por tantas coisas mais, será para breve o regresso à escrita desta irlandesa e dessa vez será com o aclamado «Pequenas Cadeiras Vermelhas».

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

«Lucy à beira-mar» de Elizabeth Strout :: Opinião


"A tristeza no meu peito parecia subir e descer de acordo com... com o quê? Não sabia.
E o tempo mantinha-se frio, lúgubre.
Sobre o meu trabalho, eu pensava: nunca mais escrevo uma única palavra."

Mas ainda bem que escreveu! Ainda bem que Elizabeth Strout continuou este saga de Lucy Barton, pois para mim é como reencontrar pessoas que conheço (que vou conhecendo e de quem gosto) e sinto que me conhecem a mim, tal é a forma brilhante como a autora consegue captar sentimentos e sensações, narrando esta coisa de amar que em tanto parece diferente, mas que facilmente encontra semelhantes.

"Quase sempre, predominava a tal sensação de estar debaixo de água; de nada me parecer de verdade.
(...) A tristeza que subia e descia em mim era como as marés."

Foi dessa forma que a pandemia invadiu as nossas vidas, mergulhando-nos a todos em dúvidas e preocupações, afastando-nos com uma onda esmagadora que só pela força das marés seguintes quis contrariar o que poderia ser o destino e foi-nos deixando recuperar aos poucos. E é precisamente sobre afastamento e reaproximação que Strout nos fala neste quarto livro onde reencontramos Lucy e William, as filhas do casal e as memórias que teimam em surgir numa época mais que propícia a isso: o confinamento. 

"«A minha infância inteira foi um confinamento. Nunca via ninguém e nunca ia a lado nenhum.» E a verdade desta constatação atingiu-me em cheio nos intestinos e o William olhou simplesmente para mim e respondeu: «Eu sei, Lucy.» Disse-o de maneira automática, sem pensar nas minhas palavras, pelo menos foi o que achei."

Algumas dessas memórias permitem atravessar melhor esses dias quase desertos, outras bem que podiam não ter sido convocadas. Por isso, a pandemia afectou-nos de formas tão díspares. E uso sempre tempos verbais que me incluam, porque os livros de Strout são isso mesmo, viagens que fazemos com estes personagens que vão dentro de nós. 

"O Sol ia alto no céu azul, perto dele as nuvens brancas pareciam entufadas e, de repente, num ápice, o Sol escondeu-se atrás de uma das nuvens e alterou a aparência do mundo (...)"

O Sol aqui é a escrita de Strout, exímia em evocar nuvens que transformam pequenos entendimentos do nosso mundo, nem que seja o nosso pequeno-mundo-bolha de leitor.

*

Opiniões anteriores:

- «Oh, William!»

- «Tudo é possível»

- «O meu nome é Lucy Barton»